O antigo Presidente da República Cavaco Silva respondeu à comissão de inquérito ao Novo Banco recorrendo, sobretudo, a transcrições do seu livro “Quinta-feira e Outros Dias” e recordando que o chefe de Estado não “exerce qualquer função” no sistema financeiro. Apesar da forma como respondeu, trata-se da primeira vez que Cavaco Silva responde a perguntas de uma comissão parlamentar de inquérito.

Seis anos depois, Cavaco vai ser confrontado com perguntas sobre o que sabia antes de o BES cair. Mas não tem de responder

Nas respostas “ao grupo de questões relacionadas com a crise do BES” – que a Lusa avançou e o Observador também teve acesso – Cavaco Silva começa por referir que “o Presidente da República, nos termos da Constituição, não possui poder executivo nem exerce qualquer função no âmbito do sistema financeiro” e que “sendo um órgão unipessoal, não dispõe de serviços que lhe permitam recolher e processar informação ‘motu proprio’”.

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“O que foi por mim referido sobre o assunto no exercício da minha atividade como Presidente da República e que então considerei relevante e que, passados mais de seis anos, posso transmitir a essa comissão de inquérito com o rigor que se exige a um ex-Presidente da República, consta do 2.º volume do livro “Quinta-feira e Outros Dias” (Porto Editora, 2018) e que seguidamente transcrevo”, pode ler-se ainda.

Num documento com oito páginas nas quais responde conjuntamente às perguntas feitas pelo BE, PS e PAN no âmbito da Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução, Cavaco Silva esclarece que, durante os mandatos como Presidente da República, adotou “a prática de receber os presidentes dos Conselhos de Administração dos bancos que pedissem audiência”.

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“E do que relevante ouvia dava conhecimento ao primeiro-ministro na reunião de quinta-feira seguinte. Da mesma forma procedi em relação ao Governador do Banco de Portugal”, garante.

Assim, Cavaco Silva aborda – socorrendo-se sobretudo de passagens do seu livro – temas como a entrada de Vítor Bento para a presidência do Banco Espírito Santo (BES), a sua preocupação com a exposição do Grupo Espírito Santo (GES) ao BES, as declarações aos jornalistas acerca do GES, a exposição do banco ao BES Angola (BESA) e contactos com Luanda, a preocupação com a resolução do BES, a recondução de Carlos Costa como governador do Banco de Portugal, em 2015, ou o financiamento das suas campanhas eleitorais.

O PS requereu, em 25 de março, os depoimentos por escrito do antigo Presidente da República Cavaco Silva, dos ex-primeiros-ministros Durão Barroso e Passos Coelho e a audição presencial do ex-comissário europeu Carlos Moedas na comissão de inquérito do Novo Banco, inquirição esta que já aconteceu.

O anúncio foi feito no parlamento pelo coordenador do PS nesta comissão de inquérito, João Paulo Correia, um dia depois da audição de José Honório, ex-administrador do BES e Novo Banco, que segundo o socialista revelou que o antigo presidente do BES Ricardo Salgado entregou, em 2014, um memorando a cada uma das autoridades políticas em que dava conta do “buraco gigante em que estava enfiado o GES”.

Para o PS, há responsabilidades que “não estão suficientemente esclarecidas por parte destas autoridades políticas”.

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Cavaco Silva reitera que nunca pediu dinheiro para campanhas eleitorais

Mais uma vez citando o seu livro, Cavaco Silva reitera que nunca pediu dinheiro para campanhas eleitorais. “Sempre tive uma forte aversão a pedir dinheiro para campanhas eleitorais. Nunca o fiz ao longo da minha vida política. A independência do Presidente da República em relação aos partidos, um dos meus princípios políticos básicos, exige que não dependa de nenhuma força partidária para financiamento da eleição”, refere o ex-presidente (inclusive referindo o intervalo das páginas do livro em que a citação se encontra).

As perguntas a Cavaco Silva sobre as campanhas eleitorais e respetivos donativos tinham sido do Bloco de Esquerda. Os bloquistas pretendiam que Cavaco esclarecesse em que informações se baseou para falar, em 2014, da “estabilidade e solidez” do sistema bancário português, e ainda se “recebeu donativos” do BES ou do GES.

Os bloquistas perguntaram se “recebeu donativos de membros de órgãos de administração do BES ou do GES”, questionando quem foram os financiadores, qual a data e o montante dos respetivos donativos.

De acordo com a citação do livro que Cavaco Silva recuperou, em 2006 Eduardo Catroga, Ricardo Bayão Horta e José Falcão e Cunha “encarregaram-se do problema do financiamento da campanha no estrito cumprimento da lei e sem qualquer recurso a fontes partidárias”.

De acordo com o antigo chefe de Estado, na recandidatura a Belém em 2011 Eduardo Catroga e Ricardo Bayão Horta voltaram às mesmas funções.

“José António da Ponte Zeferino, como meu mandatário financeiro, garantiu o rigor das contas”, cita Cavaco Silva, e “Vasco Valdez, que tinha sido secretário de Estado dos Assuntos Fiscais” no seu Governo, “assegurou o rigor das contas da campanha como mandatário financeiro”.

E chegado aqui, há uma parte que Cavaco Silva acrescenta e que não faz parte do livro. O ex-presidente refere que tem em sua posse o acórdão do Tribunal Constitucional 98/2016, de 16 de fevereiro de 2014, “sobre os autos de apreciação das contas da campanha eleitoral para as eleições presidenciais realizadas a 23 de janeiro de 2011″.

“Acrescento, contudo, que as contas das minhas campanhas eleitorais relativas à eleição para Presidente da República, apresentadas em devido tempo à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos nos termos da legislação em vigor, estão disponíveis e podem ser consultadas pelos membros da Comissão de Inquérito”, escreveu ainda.

Cavaco Silva remete ainda para um comunicado da sua campanha de 2011, dando conta que “utilizou apenas 16,2% da subvenção estatal que corresponderia ao resultado eleitoral obtido”.

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Cavaco Silva diz que José Eduardo dos Santos não respondeu sobre o BESA

Sobre a situação do BESA – a filial angolana do BES, responsável por grande parte da exposição que veio a fazer colapsar o banco português – Cavaco Silva diz que o antigo presidente angolano José Eduardo dos Santos não respondeu a uma carta sua acerca da situação do BES Angola (BESA).

Cavaco Silva responde à comissão que escreveu uma carta a José Eduardo dos Santos em 25 de julho de 2014 “em que considerava fundamental que a Autoridade de Supervisão Angolana confirmasse publicamente com urgência que não estava em causa o reembolso dos créditos que o BES tinha concedido ao BESA pelo seu valor nominal, carta cujo conteúdo fora sugerido pelo próprio Banco de Portugal”.

Ou seja, além da pressão do próprio Banco de Portugal nesse sentido – como consta do relatório Costa Pinto, que o Observador avançou na semana passada – também o então Presidente da República fez uma tentativa junto do seu homólogo angolano. Mas sem êxito.

“Esta carta não teve qualquer resposta”, escreve o antigo chefe de Estado, revelando que a mesma foi escrita em resposta a “pedidos do Governo e do governador do Banco de Portugal”, que à data era Carlos Costa.

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Na secção dedicada ao BESA, Aníbal Cavaco Silva cita uma passagem em que refere que na X Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), que decorreu em Díli em julho de 2014, o vice-presidente de Angola Manuel Vicente disse que os créditos do BES e BESA não estavam em causa.

“O vice-presidente de Angola, abordado sobre o assunto quer por mim quer pelo primeiro-ministro [Pedro Passos Coelho], disse que os créditos do BES sobre o BESA não estavam em causa, confirmando assim o que o governador do Banco Nacional de Angola teria comunicado ao governador do Banco de Portugal. Ao regressar a Lisboa fiquei a saber que, afinal, o assunto não estava resolvido”, cita assim Cavaco Silva o seu livro.

O tema do BESA foi um dos abordados nas perguntas do BE ao antigo chefe de Estado, tendo o partido questionado se “procurou ou manteve algum tipo de contacto com instituições angolanas sobre a situação do BESA ou da garantia soberana sobre uma carteira de créditos daquele banco”.

A exposição do BES ao BESA entre 2008 e 2014 passou de 1.700 para 3.300 milhões de euros, sendo correspondente a 47% dos fundos próprios do BES à data da resolução.

A exposição do BES ao BESA esteve coberta, até pouco depois da resolução do BES, por uma garantia soberana de Angola, assinada pelo Presidente da República de então, José Eduardo dos Santos, e cuja validade foi reiterada pelo ministro das Finanças, Armando Manuel, tendo depois sido revogada.

KPMG desconhecia problemas no BESA que justificassem reserva às contas

Segundo uma carta da KPMG enviada à comissão de inquérito, a KPMG Angola obteve “do Ministério das Finanças de Angola a confirmação expressa sobre os termos da garantia soberana”, referindo que “responsabilidade pelo reembolso de um conjunto de créditos seria efetuada pelo Estado angolano” referente ao valor líquido de dívida a 31 de dezembro de 2013, e que a garantia era “firme, definitiva e irrevogável”.

A KPMG diz ainda desconhecer “em absoluto” o que levou à suspensão da garantia soberana anunciada em 4 de agosto de 2014, referindo que no dia 01 de agosto “o Banco Nacional de Angola dirigiu ao BESA uma comunicação que não pode deixar de pressupor a validade e eficácia da garantia”.

De acordo com informação disponibilizada pela KPMG Angola, o valor estimado abrangido pela garantia poderia ascender a 3,4 mil milhões de dólares, “correspondendo a créditos no valor total de 5,4 mil milhões de dólares líquidos de colaterais de cerca de dois mil milhões de dólares”.

O original da garantia soberana ao Banco Espírito Santo Angola (BESA) foi devolvido às autoridades angolanas na sequência da sua revogação.

“O original da garantia, que se encontrava nas instalações do BESA, foi devolvido às autoridades angolanas, na sequência da revogação da garantia em causa pelo ministro da Finanças de Angola, comunicada ao BESA por carta de 08 de agosto de 2014”, pode ler-se numa carta, que cita outra, enviada por César Brito, ex-vogal do BES, a que a Lusa teve acesso.

No documento, em resposta a perguntas do PSD, o antigo responsável do BES refere que nunca viu a garantia e que o banco não tem os anexos da mesma, remetendo para o despacho assinado por José Eduardo dos Santos, ex-Presidente de Angola. “As dúvidas e omissões resultantes da interpretação e aplicação deste diploma são resolvidas pelo Presidente da República”, explica.