“O que é que eu vou fazer quando os homens já não olharem duas vezes para mim na rua”, perguntava-se a cantora Kamila, no romance de Milan Kundera, A Valsa do Adeus. “Tu já não tens graça”, diz Victor Manny, o encenador, à atriz Virgínia, de 46 anos. “O que é que tu queres? Ter outra vez 17 anos”, pergunta o ex-marido de Myrtle Gordon, antes de lhe dar uma bofetada. “Tu já não serves”, “o teu tempo passou”. Eis o que ouvem todos os dias milhares, milhões de mulheres em todo o mundo, quando mal passaram os 40 anos de idade. “Mas tudo isto é pior quando se é atriz, quando há uma industria de cinema e televisão que se alimenta e mantém esta visão machista do mundo. É também para essa industria que eu quero falar com esta criação”, explica o encenador Martim Pedroso em conversa com o Observador.

A peça, que esta quinta-feira inicia a sua carreira, no Teatro da Trindade, em Lisboa, tem como base o filme de culto “Opening Night”/”Noite de Estreia”, do realizador John Cassavetes e da sua mulher, a enorme atriz Gena Rowlands. A obra, que se estreou nos cinemas em 1977 e que desde então tem marcado muitas gerações de espectadores, já teve algumas adaptações para teatro, mas esta, que junta Martim Pedroso e Dalila Carmo, é a primeira a acontecer em Portugal. Um desafio e uma ousadia que a atriz e o encenador propuseram ao diretor da Trindade, Diogo Infante, já marcada para 2020, mas que só agora chega ao público, com todos os desafios que é contar uma história onde não há fronteiras entre o real e a ficção, entre a normalidade e a psicose.

“Esta obra mostra-nos a conturbada vida intima do casal Cassavetes e Rowland, que são ao mesmo tempo o realizador e a protagonista de um filme, ‘Opening Night’, que fala sobre a estreia de outro filme ‘Second Wife'”, explica o encenador português que quis fazer do cinema e do teatro uma metalinguagem para falar do que é, para uma mulher, isso de envelhecer, numa sociedade em que a juventude se tornou um obsessão e “os velhos são escondidos para que ninguém tenha que olhar para eles e pensar na morte”.

Dalila Carmo e João Reis ou a atriz e o encenador, tanto cúmplice como manipulador (foto: Pedro Macedo)

Avisam-se os incautos que esta “Noite de Estreia”, não pretende ser um remake do filme de Cassavetes e, ainda que aproveite a história, dá-lhe outros rumos, acrescenta-lhe outras ambiguidades, aproveita estar a acontecer numa sala de teatro do século XIX, numa cidade do Sul da Europa e não em Nova Iorque. Junta, de uma forma intimista, cenas gravadas em vídeo às cenas que estão a acontecer no palco, fazendo com que o espaço cénico e mental das personagens se desdobre. Coloca ao espetador o desafio permanente de escolher para onde olhar, como interpretar, como decidir o que é real, o que é ficção e o que loucura e esse é o grande trunfo desta peça.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dalila Carmo, uma mulher sob influência

Um grande close up sobre Dalila Carmo/Myrtle Gordon mostra-nos um rosto de boneca que começa a partir-se aqui e ali, pequenas rugas, pequenas mudanças que fazem com que uma mulher de 46 anos seja considerada velha e que isso passe a ser usado como uma retaliação sempre que ela insiste em ser, em existir, em afirmar-se. Dalila tem 46 anos, a mesma idade que tinha Gena Rowlands quando fez este filme; uma atriz que rejeita interpretar o papel de uma mulher velha, uma atriz à beira (ou já dentro) de uma rutura emocional e que progressivamente vai minando a peça, os ensaios, os colegas, e nesse trajeto em direção à loucura vai revelando o avesso de uma mentalidade machista, patriarcal, na qual a mulher só serve enquanto é jovem, bonita e fértil.

Laura (Margarida Bakker), a adolescente bela e fetiche sexual que vive fantasmaticamente na cabeça de Myrtle. Imagem Filipe Ferreira

A ideia de colocar este filme em palco foi de Dalila Carmo que, por sua vez, o propôs ao encenador Martim Pedroso. Conta ao Observador que tinha este projeto há muitos anos, “desde quando revi o filme no extinto cinema King, talvez pela terceira vez, e disse a mim mesma que um dia havia de fazer a Myrtle e agora senti que tinha chegado o momento. Gosto tanto desta história e de todas as suas camadas de interpretação. Por outro lado, rejeito a forma como esta sociedade trata as mulheres e quero bater o pé e reclamar o meu direito de não fazer aquilo que me estava destinado. Eu escolho a vida que quero viver, o que fazer com ela, com o meu corpo. A idade não me define, não me impede ainda que a todo o instante nos queiram convencer disso. Pior; tal como nesta peça, muitas vezes são as próprias mulheres que nos querem confinar a esse destino, casar, ter filhos, envelhecer…”

Toda a narrativa acontece durante os ensaios da peça Segunda Mulher, de Sarah Goode (Maria José Paschoal), uma escritora de 63 anos, que representa, precisamente, a forma como as mulheres aceitaram, e aceitam, passivamente que lhes digam “tens de matar a jovem de 17 anos que há em ti”, tens que aceitar que perdeste a beleza, o encanto, a frescura, deves retirar-te de cena, dizem às mulheres as imagens que circulam na publicidade, no cinema, na televisão, e que são tão somente uma projeção dos desejos masculinos mas também de uma poderosa industria da cosmética, da medicina. Basta olhar para as imagens atuais da cantora Madonna para percebermos que nem ela, que sempre foi uma rebelde, conseguiu resistir a ter 63 anos e a aparência de 30.

No inicio da história e como um pronúncio do que irá acontecer, uma jovem de 17 anos, fã de Myrtle, morre atropelada à porta do teatro, depois de esta lhe dar um autografo. Quem morreu? Uma fã ou a jovem de 17 anos que vive ainda no coração de Myrtle, bela e cheia de futuro, “com as emoções à flor da pele”? Essa jovem, Laura, vai tomar conta da cabeça de Myrtle, iniciando com ela um diálogo no limite da psicose. Mas nunca chegaremos a saber se ela existiu sequer. Cada vez mais isolada, alcoolizada, desligada da realidade a atriz conta apenas com a solidariedade intermitente do encenador Manny (João Reis) e, enquanto a noite de estreia se aproxima, ela tem apenas um objetivo: destruir aquela peça.

Sobre o que acontece depois, Martim Pedroso escreve na folha de sala: “o espectador tirará as suas conclusões e fará a sua própria moral porque é difícil julgar, muito menos neste caso. É difícil julgar a pessoa humana que age como um herói ou como uma heroína, porque não há heróis nem heroínas. Dizer o contrário, é
perpetuar a mais gasta de todas as ficções, é sublinhar o paradoxo. A pessoa humana falha e acerta. Se falha, é decapitada em praça pública, se acerta, é santificada e elevada ao estatuto de herói. E é neste ponto que vos deixamos, na promessa de que este mise en abyme, apelidado de Noite de Estreia, deverá ficar a curtir na fronteira entre a expectativa do sucesso e o mais delicioso de todos os falhanços. E parece-me que é aqui que nos encontramos, verdadeiramente, com o Cassavetes e com a Rowlands. Neste risco e nesta impossibilidade.”

A escritora Sarah Goode, e o rosto de uma mulher velha de lenço preto, que durante toda a peça se matem em palco, como uma sibila anunciando a inexorabilidade do envelhecimento e da morte. Imagem Filipe Ferreira

O Observador falou ainda com Diogo Infante, que explicou que a peça ficará em cena no Trindade sete semanas e para o ano deverá fazer algumas digressões pelo país. O ator e diretor da sala afirma ainda que sente “que o público está ansioso por voltar ao teatro” e que o Trindade continuará com a mesma orientação que teve no seu mandato anterior: “fazer peças com carreiras longas, para um público generalista, que rentabilizem a sala e tragam mais gente ao teatro”. Na próxima semana há nova estreia, desta vez na Sala Estúdio, Luiza de Jesus — A Assassina da Roda”. E em junho estrear-se-á uma peça fundamental do reportório do teatro europeu: Casa de Bonecas de Ibsen, encenada pelo coletivo LAMA teatro, uma companhia do Algarve.

A peça conta ainda com os atores Heitor Lourenço, João Araújo, Marta Félix e Sabri Lucas e estará em cena de quarta a sábado pela 20 horas, até 6 de Junho. Nos fins de semana de 24 e 25 de abril e 1 e 2 de maio, o espetáculo “Noite de Estreia” realiza-se às 11h00. Os horários das sessões dos restantes fins de semana poderão sofrer alterações de acordo com o estado de emergência decretado.