A professora universitária Bea Cantillon considera que a União Europeia (UE) tem dado “passos cruciais” na resposta à pandemia de Covid-19 para a construção de uma “verdadeira” Europa social. Já a investigadora do Instituto Jacques Delors Sofia Fernandes considera que a “Europa será social ou não será de todo”, identificando o reforço da dimensão social como “um imperativo” para enfrentar os “desafios socioeconómicos e políticos” atuais.

“Os passos que a UE tem dado durante a resposta direta à crise são passos cruciais que estão a conduzir, e que espero que conduzam, à construção de uma verdadeira Europa social”, diz, em entrevista à Lusa, Bea Cantillon.

A professora da Universidade de Antuérpia, com uma extensa obra na área da política social europeia, considera que a UE tem feito “esforços enormes” durante a pandemia, dando o exemplo do instrumento SURE, apresentado pela Comissão Europeia em abril de 2020, e que fornece empréstimos de até 100 mil milhões de euros aos estados-membros para que consigam preservar empregos.

Eu diria que é um instrumento histórico: é a primeira vez que a UE está a ajudar os sistemas de segurança social nacionais, está basicamente a sustentá-los. É algo que nunca tinha sido visto na história da UE”, refere.

Bea Cantillon considera também o fundo de recuperação (“Next Generation EU”) “enorme” e refere que a sua criação teria sido “totalmente impossível há dez anos”, o que comprova que os estados-membros “aprenderam as lições” do fracasso da resposta europeia durante a crise da zona euro, em 2010.

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“O facto de (o fundo) ser condicional é muito importante — e é condicional no sentido em que os fundos serão usados para promover políticas ‘verdes’, digitais e sociais —, porque irá servir de bússola para os estados-membros direcionarem os investimentos, que são tão necessários, rumo a uma nova economia, uma economia ‘verde’ e digital”, sublinha.

Abordando o plano de ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, a professora diz tratar-se de um “conjunto coerente”, que pode “servir de base” para “desenvolver mais os padrões sociais mínimos na área laboral e da proteção social”, e “mostrar uma direção” em termos de políticas sociais, numa altura em que os estados-membros “estão com dificuldades nas suas políticas pós-Covid” e é a UE que “está a tomar a dianteira”.

“(O plano de ação) faz as escolhas certas e espero que possa servir de base para um certo número de iniciativas legais no que se refere aos direitos laborais e no contexto da digitalização, através do fortalecimento do direito à aprendizagem ao longo da vida, e de melhores direitos sociais para as crianças”, ilustra.

Bea Cantillon espera assim que, durante a Cimeira Social do Porto, organizada pela presidência portuguesa do Conselho da UE nos dias 7 e 8 de maio, os estados-membros “acolham” o plano de ação e “implementem ainda mais” os 20 princípios do Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

Todas as peças do ‘puzzle’ estão presentes: se os estados-membros adotarem o plano de ação, será um grande passo em frente”, afirma.

Manifestando-se assim “otimista” quanto ao futuro da política social europeia, a professora diz que a pandemia “está a atingir todos os estados-membros de uma maneira muito mais forte” do que a crise financeira de 2010, o que faz com que seja “muito mais fácil implementar políticas solidárias tanto entre como dentro dos países”.

Agora, há uma derrota comum e, por isso, temos de ajudar-nos uns aos outros e precisamos uns dos outros. É isto que está a ajudar-nos e vai ajudar-nos: estou otimista, talvez demasiado, mas creio que não, porque a UE está verdadeiramente a dar grandes passos em frente”, destaca.

Europa será social ou não será de todo, diz investigadora

Já a investigadora do Instituto Jacques Delors Sofia Fernandes considera que a “Europa será social ou não será de todo”, identificando o reforço da dimensão social como “um imperativo” para enfrentar os “desafios socioeconómicos e políticos” atuais.

“A Europa será social ou não será de todo. Existem hoje desequilíbrios sociais importantes entre os estados-membros que ameaçam o futuro do projeto europeu. Sem uma dimensão social reforçada, o euroceticismo vai continuar a ganhar terreno na União Europeia (UE) e já vimos isso na década passada com a crise na zona euro”, frisa Sofia Fernandes em entrevista à Lusa.

A investigadora relembra que a “UE tem vários objetivos que lhe foram atribuídos pelos estados-membros nos Tratados”, entre os quais “a melhoria das condições de vida e de trabalho dos cidadãos, um nível de emprego elevado, a coesão social entre os estados, a luta contra as exclusões e as desigualdades”.

“A UE tem de agir de forma determinada contra os desequilíbrios sociais e alcançar esses objetivos”, aponta.

A investigadora ilustra esse desequilíbrio com os dados do desemprego jovem da UE: se a taxa de desemprego juvenil na UE se situa nos 17%, na Alemanha é de cerca de 6% e em Espanha sobe para cerca de 40%.

Não é viável ter um projeto europeu, um projeto comum, com tais divergências e a UE tem de agir. Sobretudo porque a pandemia atual e vários desafios que os países europeus enfrentam — tais como as transições ‘verde’ e digital, o envelhecimento da população ou as migrações — terão um impacto nos mercados de trabalho e nos sistemas de proteção social dos estados e poderão, sem medidas de acompanhamento, agravar esses desequilíbrios”, destaca.

Nesse sentido, a investigadora considera que a pandemia de Covid-19 pode ser um elemento “federador” neste reforço da política social europeia, tal como demonstrado na resposta inicial da UE a esta crise, em que, contrariamente à gestão da crise na zona euro em 2010, procurou “atenuar as consequências sociais”.

Entre as medidas que considera traduzirem “uma coerência e um voluntarismo” da UE para “limitar o impacto social da pandemia”, Sofia Fernandes destaca a criação do programa SURE — que visa completar os esforços nacionais de proteção do emprego e dos trabalhadores —, o reforço do programa de ajuda alimentar da UE aos mais carenciados ou ainda o plano de apoio ao emprego jovem.

Reiterando que a UE “fez muito e provavelmente mais do que aquilo que poderíamos esperar”, a investigadora relembra, no entanto, que as competências da UE na área social e do emprego “são limitadas” e que os “atores principais para limitar o impacto social” da pandemia “são os estados-membros”.

“As medidas adotadas a nível europeu não são suficientes. Têm de ser completadas por iniciativas a nível nacional que vão na mesma direção”, sublinha.

Nesse âmbito, a investigadora espera que a Cimeira Social do Porto permita “colocar as questões sociais no topo da agenda política europeia” e que os estados-membros se “comprometam” com o plano de ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

O que interessa, numa primeira fase, é garantir que pelo menos o que a Comissão propôs seja realmente implementado, porque isso não é um dado adquirido: vai depender, nomeadamente na área da legislação, da vontade ou não dos Estados-membros”, sublinha.

Sofia Fernandes espera também que o evento permita “ir além da dimensão das instituições e dos governos nacionais” para induzir uma mobilização “dos sindicatos, das empresas e da sociedade civil”.

“Penso que só se todos se implicarem, se todos contribuírem, é que podemos garantir que cada um dos princípios (do Pilar) se tornará uma realidade na vida de cada um dos cidadãos da UE”, frisa.

A agenda social é uma das grandes prioridades da presidência portuguesa do Conselho da UE, que espera conseguir a aprovação do plano de ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, apresentado pela Comissão Europeia em março e que estabelece três objetivos.

Além de procurar garantir que, até 2030, pelo menos 78% da população europeia está empregada, o plano pretende ainda que haja menos 15 de milhões de pessoas em risco de pobreza e que 60% dos adultos europeus participem anualmente em ações de formação.

Na Cimeira Social do Porto, a presidência portuguesa quer ver aprovado um programa com medidas concretas baseadas no Pilar Social Europeu, um texto não vinculativo de 20 princípios com o intuito de promover os direitos sociais na Europa.

O texto defende um funcionamento mais justo e eficaz dos mercados de trabalho e dos sistemas de proteção social, nomeadamente ao nível da igualdade de oportunidades, acesso ao mercado de trabalho, proteção social, cuidados de saúde, aprendizagem ao longo da vida, equilíbrio entre vida profissional e familiar e igualdade salarial entre homens e mulheres.