A procuradora jubilada Maria José Morgado defende que o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), também conhecido como Ticão, deve ser reforçado com mais juízes, uma vez que se trata de um organismo fundamental para dar “a resposta adequada” à realidade “tão desafiadora” da “criminalidade altamente organizada ou especialmente violenta“.

Num artigo de opinião publicado este sábado no Correio da Manhã (e numa altura em que a pretexto da nova estratégia do Governo contra a corrupção se discute o destino do TCIC), a ex-procuradora-distrital de Lisboa, conhecida voz do Ministério Público no combate à corrupção, defende que o tribunal não deve ser extinto, mas reforçado — e explica porquê.

“Vamos imaginar que a polícia está a investigar uma rede criminosa internacional e organizada, altamente perigosa, com atuação no país. Imaginemos ainda que este rede praticou durante vários anos e de forma reiterada, de norte a sul do país, inúmeros crimes de furto em residências, tráfico de seres humanos, branqueamento de capitais e corrupção. Os crimes foram sendo consumados à medida das necessidades criminosas da rede de forma a evitar a deteção policial, com rapidez e em inúmeras localidades e comprando os serviços de vários funcionários”, escreve Maria José Morgado.

“Vamos imaginar que a polícia e o MP decidem solicitar a um Juiz de Instrução Criminal (JIC) autorização para interceções telefónicas e buscas. Qual o Tribunal competente? Aqui podemos ter um problema sério“, continua a ex-procuradora. “A regra geral atribui a competência territorial ao tribunal onde tiver ocorrido o crime. Mas estamos a falar de vários crimes, cometidos por vários autores, prolongados no tempo e em múltiplos locais.”

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No entender de Maria José Morgado, “a regra da competência territorial definida traz problemas sérios na resposta à criminalidade altamente organizada”. Para criminosos mais sofisticados, “as regras tradicionais não servem” e “os tribunais não podem deixar de adaptar a sua organização moderna a este fenómeno”, defende a magistrada, sustentando que é aí que entra o TCIC, com competência centralizada para estes crimes.

O destino futuro do TCIC tem estado na ordem do dia ao longo das últimas semanas, sobretudo na sequência do anúncio da decisão instrutória do processo Operação Marquês, que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates.

As fases de inquérito e de instrução da Operação Marquês — em que inicialmente foram investigados vários crimes, incluindo de corrupção e de branqueamento de capitais alegadamente cometidos durante o mandato de Sócrates no Governo — decorreram no TCIC, onde atualmente trabalham apenas dois juízes: os já nacionalmente célebres Carlos Alexandre e Ivo Rosa.

Depois de um inquérito acompanhado pelo juiz Carlos Alexandre, o Ministério Público acusou os arguidos, incluindo Sócrates, de várias dezenas de crimes. Porém, na fase de instrução, o juiz Ivo Rosa invalidou a esmagadora maioria da acusação, deixando cair quase todos os crimes de que o ex-primeiro-ministro estava acusado. A leitura da decisão instrutória aconteceu precisamente numa altura em que Portugal discutia a nova estratégia do Governo contra a corrupção — e no setor da justiça há opiniões distintas sobre o que deve ser feito ao TCIC.

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra, já veio defender publicamente a extinção do TCIC. Recentemente, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, não fechou a porta a esse cenário, mas assinalou que o caminho ideal passa por uma “intervenção nas eventuais condições em que esse tribunal opera“.

Para a magistrada Maria José Morgado, o TCIC é “uma resposta para o crime grave” e não deve ser extinto. “Sem este tribunal com competência centralizada e especializada para a criminalidade altamente organizada ou especialmente violenta, não será possível dar a resposta adequada a uma realidade tão desafiadora”, escreveu a ex-procuradora. “Aliás, a complexidade das investigações desde há muito exige não só o alargamento do número de juízes colocados nesse tribunal central, como o seu prolongamento para a fase de julgamento.