O ex-presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker considera que a sua sucessora, Ursula von der Leyen, “não foi tratada da maneira apropriada” na visita a Ancara, mas rejeita ver no incidente “um símbolo de divisão entre instituições europeias”.

“Sempre fui tratado da maneira que é apropriada para um presidente da Comissão Europeia. Ela não foi tratada da maneira apropriada durante a visita à Turquia, mas isto não é um símbolo de divisão entre as instituições europeias, é responsabilidade do protocolo turco”, aponta, em entrevista à Lusa, Juncker.

O presidente da Comissão Europeia entre 2014 e 2019 aborda assim o incidente diplomático que ocorreu na Turquia em 07 de abril, no qual apenas o Presidente turco, Recep Tayip Erdogan, e o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, tiveram direito a cadeiras, enquanto foi reservado a Ursula von der Leyen um lugar secundário num sofá lateral, razão pela o incidente ficou conhecido como ‘sofagate’.

“É preciso perceber que, segundo o protocolo internacional, o presidente do Conselho Europeu é o ‘número um’, o presidente da Comissão é o ‘número dois’ e, se o presidente do Parlamento Europeu estiver a assistir a reuniões, é ele que sobe para ‘número um’. Isso nunca foi uma grande dificuldade para mim”, sublinha.

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Nesse sentido, Juncker — que, durante a sua presidência, propôs aos chefes de Estado e de Governo da UE que as funções de presidente do Conselho Europeu e da Comissão Europeia se fundissem numa só — considera que “o ‘sofagate’ não é um argumento suficientemente valioso” para motivar essa reforma institucional.

“Mas penso que, de facto, sobretudo nas próximas décadas, é cada vez mais difícil para os nossos parceiros no mundo perceberem por que é que temos dois presidentes”, frisa.

O ex-presidente da Comissão Europeia mantém assim que “seria mais fácil para os europeus serem compreendidos se houvesse apenas um único presidente da União Europeia”.

“Fiz essa proposta há uns anos, os Estados-membros não gostaram, mas irão descobrir o seu valor nos próximos anos”, afirma.

Juncker reagia assim ao incidente do ‘sofagate’ que, esta segunda-feira, foi debatido com Ursula von der Leyen e Charles Michel durante a sessão plenária do Parlamento Europeu.

UE tem de ser “menos ingénua” com a China

“No que se refere à China, temos de ser menos ingénuos do que fomos nas últimas décadas. A China é, claro, um parceiro comercial importante da UE — dependendo dos diferentes Estados-membros, porque os países europeus têm relações comerciais distintas com a China –, mas também é um rival e um concorrente”, afirma, em entrevista à Lusa, Jean-Claude Juncker.

No gabinete que mantém no Berlaymont, o ‘quartel-general’ da Comissão Europeia, que presidiu entre 2014 e 2019, Juncker destaca que o mercado interno da China é “grande” e a UE deve procurar “garantir” que se “mantém aberto para as empresas europeias, da mesma maneira que o mercado interno da Europa está aberto a empresas chinesas”.

“Precisamos de um acesso melhor ao mercado interno da China e todos os esforços nessa direção são bem-vindos”, sublinha.

Nesse sentido, Juncker considera que o acordo de investimento UE-China — cujo acordo de princípio foi alcançado entre a União Europeia e a China em dezembro de 2020, após sete anos de negociações que tinham começado sob a presidência de Juncker — é “um passo na direção certa”, mas peca por ser pouco robusto no que se refere às condições laborais.

No acordo em questão, a China — que, até ao momento, continua sem ratificar quatro das oito convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre as quais as duas referentes ao trabalho forçado — compromete-se a “implementar de maneira eficaz” as convenções que já ratificou, a “trabalhar com vista à ratificação” das que faltam e a “fazer esforços contínuos e sustentados para ratificar” as duas convenções sobre trabalho forçado.

Para Juncker, essas referências às convenções da OIT são “muito fracas”. “A China tem de perceber que esperamos que os nossos parceiros chineses respeitem todas as normas e princípios internacionais” sobre questões laborais, destaca.

Interrogado se, nesse caso, aconselharia o Parlamento Europeu a não ratificar o acordo em questão — sendo esse um dos passos que faltam para que o acordo possa entrar em vigor –, Juncker diz que “não”, por considerar que os eurodeputados, “como o público geral na Europa”, são “muito céticos no que se refere a acordos comerciais e a acordos de proteção de investimentos”.

“O Parlamento Europeu está a desempenhar o seu papel quando chama a atenção para os princípios básicos que devem caracterizar as relações comerciais europeias. Mas penso que, no final do dia, como sempre, depois de ter protestado, o PE irá ratificar” o acordo, refere.

A postura “menos ingénua” perante a China engloba-se, segundo Juncker, numa necessidade de “organizar melhor” as relações dos europeus com as “potências estrangeiras” onde, além de Pequim, também se encontra Moscovo.

“Nós não temos, por enquanto, qualquer relação com a Rússia, e esse não deve ser o tipo de relacionamento que deveríamos ter com a Rússia no que se refere a questões relativas ao futuro da Europa”, aponta Juncker.

Nesse sentido, o ex-presidente da Comissão apela a que a UE “restabeleça relações” com Moscovo, sem “abdicar” das suas “principais preocupações”, nomeadamente a sua “oposição firme” ao que “a Rússia fez na Crimeia” e ao que “está a fazer na parte oriental da Ucrânia”.

“Mas temos de restabelecer ligações com a Rússia o que, claro, pressupõe que a Rússia está disposta a fazê-lo. Não tenho a impressão de que a Rússia esteja a fazer os esforços necessários para conseguir estabelecer relações normais com a UE”, afirma.

Fundo de Recuperação não pode ser “dinheiro de helicóptero”

Juncker, agora conselheiro especial do executivo comunitário liderado por Ursula von der Leyen, argumenta que o ambicioso pacote «NextGenerationEU» só faz sentido se a “enorme quantidade de dinheiro” (750 mil milhões de euros) for aplicado em “novas políticas”.

“Penso que a decisão que foi tomada pelo Conselho Europeu no ano passado aponta na direção certa. Temos uma enorme quantidade de dinheiro a ser posta à disposição dos Estados-membros. Penso que os montantes envolvidos refletem a necessidade de a União Europeia agir de forma coletiva e unida”, começa por observar.

No entanto, Juncker, que foi também presidente do Eurogrupo, entre 2005 e 2013, considera crucial o dinheiro ser bem aplicado, e diz por isso esperar “que este dinheiro não seja ‘dinheiro de helicóptero’, espalhado assim”, sem discernimento.

O ‘dinheiro de helicóptero’ (‘helicopter money’) é um conceito de política monetária expansionista criado em 1969 pelo Prémio Nobel Milton Friedman e consiste na transferência direta de dinheiro para os agentes económicos individuais, recorrendo à parábola de lançar dinheiro de um helicóptero.

Para Juncker, o plano de recuperação só poderá produzir bons resultados se todos os meios que contempla forem dedicados “a reformas estruturais, no sentido nobre do termo, e programas orientados para o futuro que aumentem as hipóteses de crescimento da União Europeia”.

“Se este dinheiro for utilizado para financiar políticas existentes, não levará a lado nenhum. Mas se forem postas em prática novas políticas, sobretudo a pensar nas gerações mais jovens, então terá sido bem investido”, considera.

Para que o plano de recuperação se concretize no verão, como previsto, é necessário não só que os 27 Estados-membros vejam os respetivos Planos de Recuperação e Resiliência (PRR) aprovados pela Comissão e pelo Conselho, mas também que todos os países completem o processo de ratificação da decisão de recursos próprios, pois só então o executivo comunitário poderá ir aos mercados emitir dívida comum para angariar os 750 mil milhões de euros do pacote (800 mil milhões de euros a preços correntes).

E até ao momento oito ainda não o fizeram, mas Juncker garante não estar preocupado. “Não, não estou preocupado. Penso que todos os Estados membros se assegurarão, pelos seus próprios esforços parlamentares, de que tudo estará a postos para permitir que a Comissão mobilize esse dinheiro”, afirma.

Questionado sobre se não receia que um ou outro Estado-membro utilize a (não) ratificação da decisão como forma de chantagem sobre a UE para obter outros ganhos, um cenário que não é novo do projeto europeu, Juncker responde: “Aconselho-os vivamente a não o fazerem”.

“É uma desculpa demasiado fácil para maus comportamentos nacionais colocar toda a responsabilidade na Comissão Europeia. Esta é uma responsabilidade do Parlamento – do Parlamento Europeu e dos parlamentos nacionais -, dos governos nacionais e da Comissão. De todas estas instituições. Tanto as instituições europeias como as nacionais têm de agir em conjunto”, de modo a que o plano de recuperação efetivamente ajude a Europa a superar a crise da covid-19.