Quando o desastre nuclear de Chernobyl aconteceu, em abril de 1986, Andriy Shevchenko ainda não tinha feito 10 anos. Vivia em Dvirkivshchyna, uma aldeia com cerca de 400 habitantes que ficava a 200 quilómetros daquela que se tornou, pelos piores motivos, a central nuclear mais conhecida do mundo. Chernobyl é um assunto quase obrigatório em todas as entrevistas que o antigo avançado ucraniano deu, dá e vai continuar a dar — mas nunca, até agora, tinha Shevchenko sido tão explícito sobre as memórias que tem daquilo que aconteceu há 35 anos.

“Espero não chocar ninguém ao dizer que tudo me parecia normal. Tinha quase dez anos. Divertia-me como um louco a jogar futebol em todo o lado, a praticar qualquer modalidade. Tinha entrado para a academia do Dínamo Kiev e sentia que estava a começar a viver o sonho. Depois o reator 4 explodiu e eles levaram-nos a todos embora”, começa por contar Shevchenko em “Força Suave, a minha vida, o meu futebol”, o livro que apresentou esta segunda-feira. O jornal italiano Corriere della Sera publicou alguns excertos, onde é possível ler o que aconteceu depois do desastre.

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“Fecharam as escolas imediatamente. Os autocarros da União Soviética chegaram, carregaram todos os miúdos que tinham entre seis e 15 anos e levaram-nos embora. Cheguei sozinho ao Mar Azov, no Mar Negro, a 1.500 quilómetros de casa. Mas, ainda hoje, não sinto angústia. Senti que estava num filme, vivi aquela experiência como se fosse uma viagem. Era uma criança (…) Viver na União Soviética não era mau. Era o mesmo para toda a gente. Muita escola e muito desporto em todo o lado. Um país fechado que te tornava fechado. Nem sequer imaginávamos que podia existir uma vida que não fosse aquilo”, completa o agora selecionador da Ucrânia.

Shevchenko, que viveu o melhor período da carreira no AC Milan, tendo conquistado a Bola de Ouro enquanto jogava nos rossoneri, em 2004, conta também que sentiu uma ligação especial a Itália logo na primeira vez em que visitou o país, ainda criança. “O meu destino estava ali. Quando tinha 12 anos, levaram-nos para jogar num torneio de uma cidade chamada Agropoli. Éramos miúdos fechados, ensinavam-nos a não dar confiança a ninguém. Mas quando chegámos derretemos, como neve ao sol. As pessoas sorriam para nós, recebiam-nos com gentileza. Lembro-me de pensar que um dia gostaria de regressar àquele sítio”, revela o antigo avançado, que abre depois a porta ao lado mais sombrio dos últimos anos da União Soviética.

AC Milan v Fiorentina

O antigo avançado é o segundo melhor marcador da história do AC Milan e conquistou uma Serie A e uma Liga dos Campeões nos italianos

“No meu bairro, começámos a ter menos e menos. Os meus amigos estão todos mortos. Não por causa da radiação, mas por causa do álcool, das drogas, das armas. As brechas nos muros da União Soviética estavam a ficar cada vez mais evidentes. Estava tudo a desmoronar, o mundo onde todos tínhamos nascido estava a cair por terra. Os meus amigos, tal como todas as minhas pessoas, deixaram de acreditar em tudo e perderam-se. Salvei-me com o amor e a dedicação da minha mãe e do meu pai. E com o meu amor pelo futebol”, diz Shevchenko.

O ucraniano, que tem agora 44 anos, terminou a carreira em 2012, no Dínamo Kiev — e na altura indicou que iria dedicar-se à política, candidatando-se desde logo às eleições legislativas ucranianas. Não foi eleito e regressou ao futebol, assumindo o comando da seleção da Ucrânia em 2016 e sendo agora o líder de uma geração entusiasmante que conta com nomes como Zinchenko (Manchester City), Malinovskyi e Kovalenko (ambos da Atalanta) e ainda os naturalizados Marlos e Júnior Moraes (ambos do Shakhtar Donetsk). “Não interessa para onde vais, o teu passado acaba sempre por encontrar-te. Vivo em Londres, a minha mulher é americana, os meus filhos têm dupla nacionalidade. Mas eu continuo a ser profundamente ucraniano. E estou muito preocupado com o que tem acontecido no meu país nos últimos anos”, completa o antigo avançado, que deixou os relvados como o segundo melhor marcador da história do AC Milan, apenas atrás de Gunnar Nordahl, o sueco que jogou nos anos 50.