A ministra da Justiça reiterou esta terça-feira a sua abertura para alterações ao funcionamento do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), mas mostrou reservas quanto a uma eventual extinção, como foi defendido pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

Em declarações prestadas numa audição regimental na Assembleia da República, Francisca Van Dunem detalhou diferentes cenários para o TCIC, nomeadamente “aumentar o número de juízes do TCIC, na expectativa de que se consiga com os quatro [juízes] deixar de se fulanizar as decisões” ou então “uma outra hipótese seria integrar o próprio no Juízo de Instrução Criminal de Lisboa”.

Por um lado, continuaríamos a garantir a especialização (porque não é muita gente) e, depois, por outro lado, não se extinguiria o TCIC, que, do ponto de vista simbólico, também é relevante para o sistema de repressão da corrupção”, afirmou a ministra aos deputados.

Numa entrevista na semana passada à TVI24, a ministra apontou como principal problema do TCIC “uma identificação imediata de um determinado padrão de resposta de um juiz e de outro padrão com outro juiz”, em alusão a Carlos Alexandre e Ivo Rosa.

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O presidente do STJ, António Joaquim Piçarra, defendeu recentemente, em entrevista à Lusa, a extinção do TCIC, tribunal que considerou estar mal concebido desde a sua génese e propôs alterações à fase facultativa de instrução, que disse estar transformada num pré-julgamento.

Já na reunião plenária desta terça-feira, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) – órgão de gestão e disciplina dos juízes – deliberou “ser favorável a qualquer alteração que acabe com a atual organização e estrutura do TCIC e que não passe pelo aumento do seu quadro de juízes, seja ela a fusão do TCIC com os juízos de instrução criminal de Lisboa seja a disseminação das atuais competências do TCIC pelos juízos de instrução criminal da sede dos Tribunais da Relação”.

Ministra da Justiça admite que credibilidade da democracia sai afetada com alguns processos

A ministra reconheceu ainda o impacto de alguns processos judiciais na credibilidade do sistema democrático e avisou para os riscos de aproveitamento dessas situações por parte de “inimigos da democracia”.

Sem nunca referir explicitamente alguns casos mais mediáticos, como a Operação Marquês – que levou representantes dos diversos quadrantes políticos a comentarem o estado do setor judicial e a ação do executivo —, a governante lembrou que “a política espelha a sociedade” para explicar as suspeitas de crimes associadas a personalidades políticas e empresariais em Portugal.

“Tivemos e teremos pessoas que exerceram relevantes cargos políticos sobre as quais recaíram suspeitas da prática de crimes. Algumas delas de crimes graves, de homicídios a apropriação indevida de bens públicos. Tivemos pessoas que ocuparam lugares do maior destaque no panorama da economia e da finança nacionais acusadas de crimes graves associados à atividade empresarial que desenvolviam”, começou por referir na sua intervenção de abertura numa audição na Assembleia da República.

E continuou: “A democracia distingue-se dos regimes ditatoriais porque não oculta esses crimes. Porque não privilegia agentes em função da sua pertença a um partido, a uma ordem a uma congregação, ao sistema. E isso faz toda a diferença. Porém, a credibilidade do sistema democrático sai beliscada e o sistema expõe-se aos seus inimigos se não for capaz de decidir essas causas num prazo razoável”.

Francisca Van Dunem alertou, então, para a ameaça colocada pelos “inimigos da democracia”, ao defender que estes “não hesitarão em esmagar a independência dos tribunais, em substituir a liberdade de pensamento e de ação”. Simultaneamente, frisou que esses inimigos exploram “as desigualdades da resposta repressiva do Estado” para capitalizar uma suposta “evidência da necessidade de agentes e de ações providenciais” junto das pessoas.

Foi então que a ministra da Justiça realçou a recente aprovação da Estratégia Nacional Anticorrupção, assegurando que o Governo já iniciou a sua execução a nível legislativo e que “em breve” serão apresentadas no parlamento propostas de alterações ao Código Penal, ao Código de Processo Penal, à Lei da Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos e ao Código das Sociedades Comerciais.

“São propostas trabalhadas, debatidas, que visam no essencial aproximar a investigação à data dos factos; garantir de uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de repressão da corrupção; melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e assegurar a adequação e efetividade da punição”, explicou Francisca Van Dunem, acrescentando: “Em suma, mudar a realidade e transformar as perceções”.

Francisca Van Dunem assume “perceção geral de ineficiência” da Justiça

Van Dunem admitiu também a existência de uma “perceção geral de ineficiência” da população em relação ao setor judicial e considerou que muitos processos de grandes dimensões se prolongam por demasiado tempo.

É inquestionável a persistência de uma perceção geral de ineficiência e de ausência de respostas globais adequadas, perceção essa claramente alimentada por processos mediatizados, normalmente processos penais de grandes dimensões e envolvendo figuras com notoriedade pública. Muitos desses processos têm, de facto, tempos de vida socialmente insuportáveis, numa era em que a verdade se tornou instantânea”, afirmou.

Numa intervenção realizada em audição regimental na Assembleia da República, a governante vincou a “leitura normativa” da importância da celeridade na justiça e que “o processo equitativo (…) não deve ceder à tentação da urgência”, mas reconheceu que a lentidão pode ter consequências ao nível da eficácia e ser usada como uma arma por autoritarismos.

“Concordamos que a justiça não tem de se acomodar a expectativas individuais. Mas entendemos, como antes, que é necessário aproximar o tempo da justiça de expectativas sociais razoáveis, sob pena de inadequação, de ineficácia e de instrumentalização por pulsões autoritárias”, observou.

A ministra da Justiça não descartou a realização de “mudanças” ou a necessidade de “alterar regimes”, sobretudo por força da transição digital, que considerou acarretar “um amplo conjunto de interrogações.

“Tempo de resposta é inaceitável” na justiça administrativa e tributária

A ministra considerou ainda ser “inaceitável” o excesso de tempo de resposta nas áreas administrativa e tributária do sistema judicial e assumiu a sua quota-parte de responsabilidade nessas matérias.

O sistema, tanto na dimensão cível como criminal, está ainda a responder, por regra, dentro de parâmetros de tempestividade e razoabilidade, o que só não ocorre ainda na jurisdição administrativa e tributária. É preciso dizer que aqui, neste segmento, o tempo de resposta é inaceitável. E coassumir as responsabilidades na parte em que a lassidão é imputável a défices do sistema”, declarou a governante.

De acordo com Francisca Van Dunem, essas duas áreas representam a exceção nos progressos alcançados nos últimos anos. Perante os deputados presentes na audição, a ministra enumerou a melhoria dos números em diversos parâmetros.

“As estatísticas da justiça dizem-nos que passámos de 1.500.000 processos pendentes no final de 2015 para 695.000 processos no final de 2020, com taxas de resolução processual acentuadamente positivas. Em 2020 registou-se o número mais baixo de pendências dos últimos 25 anos”, disse, continuando: “Todos os indicadores disponíveis apontam no sentido da quebra global do número de processos iniciados e pendentes nos tribunais entre 2015 e 2020”.

A ministra da Justiça adiantou ainda na sua intervenção que “o tempo de duração média dos processos penais é esta terça-feira de treze meses”, num período que inclui a fase de inquérito e o julgamento, sendo que para as ações cíveis esse prazo médio situa-se em 12 meses.

Em relação aos recursos humanos, destacou o aumento no mesmo período do número de juízes, magistrados do Ministério Público e oficiais de justiça e recordou também a introdução de “programas de modernização e automatização”.

Por outro lado, a pandemia de Covid-19 ditou uma “retração da atividade dos tribunais”, segundo Francisca Van Dunem, que, porém, atestou a monitorização da evolução da situação em todas as comarcas. “Os últimos dados recolhidos, respeitantes ao mês de abril, indicam que se mantém a tendência de redução da pendência global nos tribunais judiciais, embora a um ritmo menor do que nos anos anteriores”, disse.

Ministra relativiza “preocupação” do Parlamento Europeu com caso do procurador

A ministra da Justiça relativizou esta terça-feira a resolução aprovada na semana passada pelo Parlamento Europeu (PE), na qual os eurodeputados expressaram “profunda preocupação” em relação ao caso da nomeação do procurador José Guerra para procurador europeu.

Confrontada pelos deputados do PSD e do CDS numa audição regimental na Assembleia da República, em que foi lembrada a aprovação da censura ao governo português com 633 votos a favor, 39 contra e 18 abstenções, a governante considerou que o foco da preocupação do organismo europeu esteve nas notícias veiculadas pelos meios de comunicação social e não na atuação do executivo neste processo.

“Aquilo que está lá escrito é que o Parlamento [Europeu] manifesta profunda preocupação com as revelações dos meios de comunicação social segundo as quais o governo português transmitiu ao Conselho informações erróneas sobre as qualificações e a experiência do candidato indicado em segundo lugar. Ou seja, aquilo que o parlamento vê com preocupação são alegações jornalísticas”, frisou.

Francisca Van Dunem evitou alongar-se em mais comentários, ao assinalar que já tinha prestado explicações sobre as condições em que foi esta nomeação, quer na Assembleia da República, quer no PE.

Não quero voltar a este assunto, acho que temos assuntos mais importantes para trabalhar, nomeadamente, a implementação da Procuradoria Europeia e é aí que devemos concentrar-nos agora”, enfatizou.