Se nos dissessem em crianças que, um dia, nos fartaríamos de “Star Wars” e que o Rato Mickey se pareceria, perigosamente, com o Imperador Palpatine, ficaríamos francamente zangados com a brincadeira. Que o Pai Natal não existisse, um puto ainda dava de barato; agora, “Star Wars”? Walt Disney? Estamos a pisar solo sagrado, meus amigos. Não-brinquem-comigo.

Bom, mas quem saberia então o que traria o futuro? Que nem as cassetes eram para sempre? Que a tecnologia iria ainda mais além daqueles visores onde rodávamos meia dúzia de slides com bonecos vagamente tridimensionalizados? Que, um dia, adultos não foragidos do manicómio andariam na rua de trotinete e headphones coloridos nas orelhas?

“Star Wars: O Lote Estragado” é a nova série de animação do universo “inspirado nas personagens criadas por George Lucas”. Todas as sextas, há um novo episódio na Disney+. Estamos no território do spin-off do spin-off do spin-off. Literalmente. Que é como quem diz, numa galáxia muito, muito distante daquilo que, originalmente, nos interessou. “O Lote Estragado” (o título original é um ainda aceitável “The Bad Batch”. Em português, soa, simplesmente, a “leite estragado” e tem o sex appeal de um camião do lixo) é um spin-off de outra série de animação, “A Guerra dos Clones”, que terminou no ano passado, depois de sete temporadas, 130 episódios e, apesar de tudo, melhor receção crítica do que o filme de que era, ela própria, já um spin-off, o homónimo de 2008 que tem a classificação mais miserável para qualquer título do universo Star Wars no cúmulo crítico do Rotten Tomatoes e que é, por sua vez, spin-off da saga de prequelas, mais concretamente, do desastroso segundo volume, “O Ataque dos Clones”).

[o trailer de “O Lote Estragado”:]

Confuso com esta frase interminável? É assim que nos sentimos hoje com “Star Wars”. Com a longa manta de filmes e séries que a Disney insiste em sacar de dentro do que foi, um dia, o mais bonito trio de filmes que se conseguia tirar de uns robôs de lata e umas espadas de luz.

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Não se apoquente, porém. Não precisa de ir rever nada, nem investigar que filmes e episódios possa ter em falta. Não tem de ir lamber páginas e páginas de Google para se voltar a situar nesta conversa, antes de poder premir, inocentemente, o play. Só há duas hipóteses para as histórias: ou o destino das personagens nos interessa ou não. Não há nada assim tão denso em “Star Wars” que exija horas de estudo. À vista do Rato Mickey, sentado aos comandos do Império, talvez tudo isto pareça muito profundo, mas para um ser humano comum, maior de idade e minimamente alfabetizado, não estamos propriamente perante o Em Busca do Tempo Perdido. Mesmo que ande de trotinete.

“O Lote Estragado” abre com um especial de 75 minutos e tem a duração prevista de 16 episódios. Acompanha a unidade 99, composta por cinco soldados clones que “nasceram” com defeitos genéticos. Simultaneamente “deficientes” e “especiais”, serão os Pinóquios, os Wall-E da história, os bonecos que sonham, as máquinas que fogem à programação graças à sua defeituosa humanidade. Estão do lado do bem, claro, descobrimos ao fim de dois minutos. Do lado dos jedis sobreviventes, e, portanto, na luta contra aqueles que deveriam servir: os exércitos do Império, que está a nascer das cinzas da República (para saber as diferenças, admitindo que as haja, consulte um geek ofendido com este último comentário perto de si).

Uma das maiores fragilidades de “Star Wars”, mesmo no tempo em que era muito bom, foi sempre a questão dos “stormtroopers”. Palpatine era assustador, Darth Vader tremendo, mas como acreditar verdadeiramente na existência e poder de um império do mal conquistado e mantido por um exército de soldados incapazes de acertarem um tiro? Mais fáceis de despistar do que um cachorro bêbedo? Mas, no tempo em que “Star Wars” era bom, os “troopers” eram só pano de fundo – toleravam-se; nos “Clones”, foram trazidos para o primeiro plano do drama – e, claro, é o drama.

Depois do fracasso comercial de “Solo”, disse-se que a Disney iria refrear o ímpeto de esfolar o rabo a “Star Wars” (desculpem, mas não conseguimos mesmo encontrar termo técnico trendy capaz de explicar, mais fielmente, o processo de esfolamento do rabo à saga em curso); o êxito de “The Mandalorian” deve ter-lhes feito quebrar a jura de abstinência. Há muito dinheiro ainda a ganhar nisto e, como se vê n’ “O Lote Estragado”, basta mandar qualquer um escrever, qualquer um realizar e, no fim, pôr em cima a etiqueta-oficial-aprovada a dizer “Star Wars”.

A paciência esteja connosco.