Pode parecer estranho, mas antes da existência dos computadores já existiam pastas e ficheiros. Eram diferentes, claro: armários de madeira ou, mais tarde, de alumínio com gavetas repletas de (lá está) pastas, que no seu interior continham (como não podia deixar de ser) ficheiros.

Se íamos a um banco pedir um crédito, a pessoa que nos atendia levantava-se e dizia “vou buscar o seu ficheiro”. Se o contabilista sénior de uma empresa não encontrava uma fatura de uma encomenda, o contabilista júnior tinha de ir percorrer gavetas e pastas até encontrar o ficheiro da encomenda (e, presumivelmente, a fatura).

Catalogar coisas, subdividi-las em categorias mais pequenas, é uma atividade inerentemente humana e bastante antiga: Aristóteles, que terá nascido 384 anos antes de Cristo, afirmava que a matéria era composta por quatro elementos, terra, água, ar e fogo; Empédocles, que nasceu quase 500 anos antes de Cristo, acreditava que toda a vida surgia da combinação de elementos, combinação essa que por vezes produzia resultados estranhos: cabeças sem pescoço, braços sem ombros, criaturas humanas com cornos ou duplo sexo.

A capa de “Ultrapop”, o novo álbum dos The Armed

Como tantas outras atividades, a música também padece do vício da catalogação. Chamamos Lá à nota que se escuta à frequência de 440 Hz; na escala ocidental, definimos 12 notas numa oitava (que corresponde a 440Hz); a frequência de um Dó é 523Hz, a de um Dó uma oitava acima é 963Hz. Não catalogamos a música apenas em termos científicos, usamos igualmente uma espécie de notação vinda da cultura popular: chamamos soul ao gospel dessacralizado e rock’n’roll a uma forma acelerada e simplificada de rhythm and blues; e passámos a chamar rock a toda a música com origem numa guitarra elétrica amplificada, mesmo que não rocke nem role.

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Mas o que fazemos quando a música que se nos apresenta não encaixa em nenhum dos rótulos que conhecemos e aprimorámos ao longo de décadas? Este problema complicadíssimo (visto que os humanos têm de atribuir sentido e catalogar tudo) pode ser observado em “All futures”, a segunda faixa de Ultrapop, o mais recente álbum dos The Armed: ainda o ouvinte não se sentou na cadeira para escutar e já está a ser assaltado por uma combinação de sons (uma bateria bruta, uma linha de baixo psicopata), sintetizadores vários, que posteriormente submergem debaixo de uma camada de ruído, eventualmente produzido por uma guitarra; mesmo a própria voz é abafada, como se escutada do fundo de uma sala repleta de colchões de uma ponta a outra; quando o canto acaba, os instrumentos tomam anfetaminas e tentam eliminar-se mutuamente.

É possível que por esta altura as almas sensíveis estejam no chão, a espumar da boca, um braço ainda levantado a pedir ajuda que nunca chega – sem aviso, “All futures” deu lugar a “Masunaga vapor”, que se assemelha ao ruído que dois comboios fazem quando chocam a alta velocidade e o metal de cada um corta e rasga o do outro; isto é metal, é a pop possível na era dos novos fascismos ou simplesmente uma forma extremamente apelativa de tortura, que resolve esconder melodias debaixo de uma torrente de eletricidade com laivos de psicopatologia?

[“All Futures” ao vivo:]

Não é a primeira vez que alguém decide enterrar a voz num tsunami de eletricidade – a técnica foi desenvolvida com particular talento pelos My Bloody Valentine e tem encontrado formas de ressuscitar, a tempos irregulares, na música pop (os Health serão, talvez, o melhor exemplo disso). Mas isto não é o shoegaze dos My Bloody Valentine: aqui não há melancolia nem delicadeza, é um assalto aos sentidos mais próximo das descargas da música industrial apenas que com a particularidade de ser extraordinariamente detalhada, algo que só notamos após várias escutas, se sobrevivemos ao choque inicial.

Ocasionalmente, como em “An Iteration”, os The Armed facilitam-nos a vida: a melodia está ligeiramente mais à frente, distinguem-se os arranjos de guitarra, o ataque das baquetas aos timbalões e mesmo o jato de eletricidade que surge ao minuto e 20 segundos ainda pertence ao género que conhecemos difusamente por rock; mas “An Iteration” ou “All futures” são exceções: no mais das vezes, Ultrapop parece um meticuloso trabalho de engenharia de som, empenhado em frustrar o ouvinte, atordoá-lo com excesso de ruído por forma a que este não repare na complexidade dos arranjos que estão por trás.

[ouça “Ultrapop” na íntegra através do Spotify:]

Eletrónica, sintetizadores, metal, música industrial, psicadelismo negro, shoegaze, a tudo os The Armed botam mão na sua ânsia de produzir o que podemos qualificar como o som com que todos os autores de bandas-sonoras sonharam quando tiveram de musicar filmes de terror. Um ouvinte sagaz concluirá estarmos perante gente que aprecia confundir os ouvintes – alguém com acesso à internet chegará à mesma conclusão: os The Armed inventam nomes falsos de membros da banda, fornecem biografias contraditórias, criam press releases falsos e, quando lhes pedem fotos da banda, fazem sessões com modelos contratados, mantendo os seus rostos no anonimato.

Toda a conversa que se encontra na internet sobre o esforço que a banda faz para manter o ouvinte às escura quanto à identidade e para esconder as reais intenções da banda é muito interessante, ou pelo menos tão interessante quanto ver relva a crescer – mas nada disso explica o que raio acontece em “Average death”, que é simultaneamente celestial na melodia e infernal no ataque psíquico conduzido pela instrumentação. (Cada vez que as vozes se ouvem com clareza por um segundo há logo uma explosão de guitarras, uma bateria com problemas de controlo de agressividade e mais um sem número de instrumentos não-identificáveis à centésima audição.)

[“An Itineration”:]

Algures na internet alguém definiu Ultrapop como eletro-pop-metal (o que já de si seria uma definição engraçada, mesmo que não fosse verdadeira) mas talvez as raízes do álbum se encontrem no punk-hardcore, um género que podemos definir pela tentativa de tocar o máximo de notas possíveis no mínimo de tempo e, de preferência, a um volume muito alto. Em geral ,o punk-hardcore não é complexo – mas Ultrapop pega nessa matriz, estica-a numa série de direções diferentes, cruza-a com géneros que, à partida lhe são opostos, e produz um efeito semelhante ao de finalmente alguém fundir água com azeite: ouvimos e pensamos que isto está realmente a acontecer, mas não era suposto.

Uma secção a meio do disco ilustra o grau de diversidade e justaposição inusitada que encerra Ultrapop: de “An Iteration” até “FAITH IN MEDICATION” levamos com rock dançável, ganchos de eletrónica pop, riffs clássicos, punkalhada, berraria, melodias doces, rock matemático e brutalidade industrial, além de solos de guitarra aos guinchos, tão lá atrás na mistura que parecem criancinhas amordaçadas a pedir ajuda.

Algumas pessoas correm, outras fazem musculação, outras entregam-se ao ioga ou à meditação ou a uma religião – mas quem resistir aos 4 minutos de pancadaria sonora de “REAL FOLK BLUES” estará decerto mais bem preparado para o apocalipse que, a avaliar por Ultrapop, deve estar quase a chegar.