A reconfiguração do Serviço Nacional de Saúde é a reforma fundamental que Portugal terá de fazer, a par de outras como a da Justiça e a desburocratização, defende António Costa Silva numa entrevista à Lusa.

“Tudo aquilo que se passou na pandemia relativamente à saúde tem que nos levar à exigência de fazer um balanço“, diz o presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento (CNA) do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Para o presidente da CNA, é neste sentido que “o Serviço Nacional de Saúde tem que atuar, por exemplo, com o setor social, que é um dos grandes problemas que a pandemia revelou e, portanto, repensar o SNS também implica repensar as suas interfaces com o setor social (…) e a interação com o setor privado”.

Segundo o professor, as atuais sociedades democráticas estão confrontadas com um “trilema“, que é, ao mesmo tempo, compatibilizar a luta pelo poder político, com as decisões políticas que têm de ser tomadas e com a promoção do bem público. Nesta perspetiva, Costa Silva considera que a sociedade “foi testada e de certa maneira os três vértices do triângulo funcionaram“.

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“Podemos criticar esta ou aquela medida, esta ou aquela opção, mas quando a saúde esteve em causa o sistema democrático foi capaz de continuar a luta pelo poder político, mas de gerar decisões e promover o bem público para controlar a pandemia”, diz.

Entre as reformas no âmbito do SNS, Costa Silva cita as bases de dados integradas e a digitalização para gerir todo o percurso do utente. “Temos que pensar em coisas como o hospital digital do futuro, a prestação de serviços digitais de saúde, que é absolutamente importante e que pode simplificar e inclusive racionalizar”, prevê. Costa Silva defende igualmente que o país tem condições para ser uma das “fábricas da Europa de medicamentos”.

O país tem competências na área da síntese química fina, da fermentação industrial da criação de substâncias ativas para os medicamentos, tem competências na área da farmacêutica, dos produtos farmacêuticos e, portanto, se nós conseguirmos desenvolver uma política industrial e ajudar os decisores políticos a configurar essas políticas, podemos mudar completamente um setor que é vital para a sociedade no futuro”, garante.

No âmbito das reformas na economia, o presidente da CNA considera que se deve apostar na sustentabilidade, na transição energética, na descarbonização, na bioeconomia e nos produtos biológicos. “Todos estes clusters vão avançar” — previne — “mas sem deixar de olhar para todos os clusters e setores tradicionais (…) para o calçado, para o têxtil, para o vestuário, [que] têm tido um percurso assinalável”, afirma.

Segundo Costa Silva, o têxtil e o vestuário em si já representam 10% das exportações portuguesas e têm um potencial enorme, pelo que o que necessitam é, “provavelmente, ligar à bioeconomia”. “Muitos dos produtos podem vir a ser produtos biológicos, para estarmos na frente do conhecimento e na frente da intervenção nos mercados”, concretiza.

Questionado sobre a possibilidade de reformas no mercado de trabalho, o professor considera que ele “é sempre muito discutido”, embora, na prática, as leis de trabalho portuguesas sejam “melhores que as espanholas ou francesas”.

“Portanto, quando estou a falar de reforma, também estou a falar de reforma da qualidade das finanças públicas, que está no PRR e que é muito importante e vamos acompanhar, porque a qualidade das finanças públicas significa saber melhor como são usados os recursos públicos”, diz.

Nesta perspetiva, acrescenta, isto significa “monitorizar essas despesas do Estado e (…) também fazer com que o Estado seja um bom pagador, que é um aspeto extremamente importante para sanear o funcionamento de todo o sistema”.

“[Este aspeto] também está relacionado com as reformas na justiça, sobretudo na justiça económica, no funcionamento dos tribunais administrativos, dos tribunais fiscais”, afirma ainda, de modo que o peso da regulamentação e dos custos, que oneram as atividades das empresas sejam reduzidos.

Considerando que no âmbito da justiça já tem sido feito “algum esforço de modernização do sistema”, Costa Silva defende que “ele tem que ser muito mais aprofundado com a digitalização”. “Há muita coisa a fazer que pode melhorar o ambiente de negócios (…), todo o sistema à volta das empresas e reduzir os custos”, afirma.

Para o professor, “a outra grande reforma nessa área” é a do licenciamento, porque “tudo isto pode ser paralisado se (…) não tivemos processos de licenciamento mais rápidos”.

Um dos grandes entraves que temos que mudar é reduzir o peso burocrático, mas – também aí, atenção – sem pôr em causa a questão da prestação de contas, da transparência que tudo isso tem que ter”, termina.

“Retoma ainda vai demorar”, turismo e agricultura na frente

A retoma económica em Portugal ainda vai demorar, embora alguns setores, como o turismo e a agricultura possam recuperar mais depressa, diz António Costa Silva. “O setor do turismo, que é um dos setores que foi muito atingido, pode responder muito rapidamente“, exemplifica o professor,

citando o caso do Algarve, onde já se vê “alguns sinais dessa retoma”. Nesse sentido, considera António Costa Silva, “foi extremamente importante a decisão do governo britânico para dar luz verde também à circulação de turistas para Portugal”. 

Para além do turismo, Costa Silva aposta ainda numa retoma mais rápida no setor agrícola, na medida em que, recorda, só em 2019 a agricultura exportou para mais de 180 países. “É uma coisa, obviamente, impressionante e, portanto, com um potencial enorme que também se pode desenvolver”, especifica.

Tudo somado, o presidente da CNA prevê que “talvez em 2022” já haja alguma recuperação, da qual os primeiros sinais foram patentes no segundo trimestre deste ano.

Se continuarmos com estes números, que são excelentes em termos do controlo da pandemia, penso que alguns setores poderão ter uma retoma ainda este ano, outros demorarão mais tempo”, reforça.

Mas, reitera, “é evidente que tudo isso está condicionado pela evolução da pandemia e uma recaída seria trágica”. Para que haja desenvolvimento e o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) seja significativo e sustentável nas próximas décadas, o professor considera, todavia, que é fundamental “mexer” em algumas alavancas, que identifica: as competências, a capitalização das empresas e o “ecossistema da inovação”.

Temos de fazer [um investimento muito grande] nas competências e nas qualificações“, explica Costa Silva, citando que no indicador crucial na área da educação — a percentagem da população ativa que termina o ensino secundário — Portugal é dos piores países da União Europeia. Para o presidente da CNA, isto “é uma espécie de espada de Dâmocles que impende sobre o desenvolvimento da economia portuguesa“.

Quanto à descapitalização das empresas, Costa Silva considera que existe um “problema sério“, que tem de ser corrigido, “apostando claramente não só no sistema bancário que existe (…) como mudando o paradigma de capitalização das empresas”. “O Banco de Fomento será importante para projetos a médio, longo prazo e para intervenções, mas também os fundos de investimento, as sociedades de capital de risco, especialmente para as empresas mais tecnológicas”, vinca.

Finalmente, Costa Silva considera que é crucial apostar no modelo de inovação tecnológica. “Este ecossistema de inovação que liga as empresas ao sistema científico e tecnológico está a funcionar em múltiplas áreas“, diz o professor, acrescentando que, em junho de 2020, o “European Board da União Europeia, que avalia a importância da inovação nos vários países, passou Portugal de inovador moderado para inovador forte, a par da Alemanha ou da França“. “Isto é um sinal de esperança”, conclui.

PRR. “O desafio vai ser pôr a comissão a funcionar”

A composição da Comissão Nacional de Acompanhamento (CNA) do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) não está ainda concluída, mas o grande desafio vai ser pô-la a funcionar, diz o seu presidente.

“É uma tarefa que compete ao Governo fazer a nomeação final e quando isso sair vamos entrar em funcionamento“, afirma, recordando que a CNA tem a representação de todos os parceiros sociais, associações empresariais, sindicatos, CCDR, comunidades intermunicipais, a presidência da associação dos municípios e das freguesias, a representação do Conselho de Reitores, dos politécnicos, do Conselho Científico Nacional e depois de todos os órgãos do setor social, das mutualidades, as misericórdias.

Todo o grande desafio vai por aí, vai ser pôr a comissão a funcionar“, considera, manifestando-se, todavia, convicto de que será uma “estrutura operacional”.

A comissão integrará cerca de 10 personalidades independentes, especialistas nas diferentes áreas que o PRR vai acompanhar, as quais já estão escolhidas. Assim que forem nomeadas as personalidades, será organizada a primeira sessão plenária, cuja reunião ainda não tem data, mas que espera se realize ainda no primeiro semestre do ano.

Costa Silva pretende discutir um modelo “flexível” e “inovador” com os seus colegas “logo na primeira reunião, para pôr tudo a funcionar. “É evidente que não podemos ter uma comissão com trinta e tal pessoas a reunir continuamente“, explicou. As reuniões plenárias terão lugar “duas, três [vezes] por ano”, disse.

O que queria ver era se existia um modelo flexível, portanto, cada área ter um especialista ou dois, que são reputados e reconhecidos nas suas áreas, para trabalhar com todos os atores sociais, com as empresas e com os organismos que estão envolvidos em cada um dos componentes”, prosseguiu.

No âmbito do modelo de governação dos fundos PRR, o Governo estabeleceu quatro níveis de coordenação, assegurados por três comissões e pela estrutura de missão Recuperar Portugal.

“Vamos ter a estrutura de missão, que tem as competências executivas e que está ligada ao Governo. A Comissão é completamente independente e é de Acompanhamento”, disse, acrescentando pretender que esta tenha “como objetivo fundamental pôr o país a falar consigo próprio”. Isto “porque um dos problemas que nós temos no país — e essa é uma reforma fundamental — é a reforma da nossa mentalidade“, considera.

Temos um país que funciona em silos” que muitas vezes estão “em guerra uns com os outros e a questão aqui é fazer sair o país dos silos” e colocar os atores a dialogarem entre si e encontrarem “plataformas de convergência que façam mobilizar os grandes objetivos”, defende António Costa Silva.

Temos uma sociedade que está anestesiada, vive na ansiedade, no medo, na insegurança, mas há alguma mobilização e é muito importante esse conhecimento ser mobilizado e ser posto ao serviço” da execução do programa.

Sobre como se articula tudo com os poderes da CNA, Costa Silva salienta que a comissão tem o poder de “agregar vontades, de representar a sociedade civil, de fazer acontecer as coisas ao nível desta agregação de vontades e de mobilizar os saberes que existem em cada uma das áreas para reconfigurar as políticas”. As recomendações que a Comissão Nacional de Acompanhamento fizer, diz, podem “levar a decisão política a ser mais informada“.

Ora, “já vimos este modelo a funcionar durante a pandemia”, em que a decisão política recorreu aos especialistas, lembrou, acrescentando que o que defende “é que não faz sentido esta quinta-feira governar o país sem recorrer à infraestrutura cognitiva, aos saberes que existem em todas as áreas”, e Portugal precisa “de mudar a economia do país”.

A inovação está na ordem do dia e “temos que inovar também nos sistemas de organização, nos sistemas do próprio funcionamento da política e, provavelmente, com a experiência e o balanço que a pandemia mostrou, e com esta mobilização que soube fazer da infraestrutura cognitiva do país (…), penso que podemos reproduzir esse modelo na Comissão Nacional de Acompanhamento”.

Na sua opinião, “o país está muito prisioneiro de visões muito apocalípticas, visões extremistas e sobre o futuro”, pelo que sentiu que a Comissão Nacional de Acompanhamento “podia significar uma espécie de reconstrução da esperança”. O país “precisa desesperadamente da esperança, a esperança é a gramática da vida” e “sem esperança não há nobreza de espírito”, considera.

“Temos aqui um modelo que passa a funcionar o país de baixo para cima e pôr os atores em contacto também com os decisores, tentando condicionar todo o desenvolvimento do projeto, mas no sentido correto, isto é, no sentido de aplicar os recursos públicos exatamente nos setores em que eles são mais necessários”, conclui.

Se algum projeto tiver de ser travado “vamos lutar por isso”

O presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento (CNA) diz também que se a entidade sentir que algum projeto, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), tem de ser travado, irá “lutar por isso“.

“A Comissão tem a autoridade que lhe é conferida pelo decreto que já foi tornado público e, portanto, nós vamos atuar dentro desses condicionantes”, afirma António Costa Silva. “Agora, se sentirmos que algo tem de ser travado, vamos recomendá-lo e vamos lutar por isso“, garante o presidente da CNA, entidade que vai acompanhar os projetos que vão receber fundos europeus do PRR.

Questionado sobre que projetos podem ser travados, o presidente da CNA diz serem aqueles “que não estão a responder aos objetivos para que foram desenhados“. Costa Silva salienta que os projetos e o próprio PRR já foram negociados pelo Governo com a Comissão Europeia.

“Portanto, têm metas, têm objetivos”, mas se estes “não estão a ser cumpridos, é evidente que nós não podemos continuar a despender recursos que são vitais em áreas que não estão a responder”, argumenta. “Mas isso são os balanços que iremos fazer ao longo do tempo e ver como é que tudo se articula na execução do programa”, acrescenta.

Relativamente à análise de custo-benefício de cada projeto, que defende, o presidente da CNA salienta que é “sempre indispensável”, já que todo o processo “tem que funcionar com base em regras de rigor“. Essa análise “dá-nos uma orientação muito clara sobre a aplicação dos próprios recursos públicos, aonde é que eles são mais produtivos”, argumenta o responsável.

“Mas, temos também que reconhecer que a análise custo-benefício tem que ser combinada com critérios de coesão social e de sustentabilidade, isto é, nós não podemos esquecer que temos um território e muitas vezes não olhamos para o território no seu conjunto”, aponta Costa Silva.

“Nós não queremos atrapalhar a estrutura de missão em termos da execução, mas vamos exigir o máximo de rigor, vamos ser muito exigentes e vamos olhar para cada um dos programas para ver se eles respondem àquilo que são os desígnios que estão expressos”, assevera.

Por Alexandra Luís e Luísa Meireles (texto), Hugo Fragata (vídeo) e Mário Cruz (fotos)