Nascida há 40 anos em São Paulo, no Brasil, Janaína Leite descreve-se como mãe, atriz, encenadora e dramaturgista. É conhecida por espetáculos biográficos ou documentais com conteúdos inusitados e esta semana apresenta aos portugueses duas dessas experiências que põem em causa a linguagem artística comum: Camming 1×1 e Camming 101 Noites, ambos acerca da prostituição online, uma prática que parece ter subido de popularidade durante os meses de confinamento e pandemia.

As mulheres que se exibem por dinheiro em direto na internet através da webcam, conhecidas como camgirls, deram mote aos dois espetáculos. Janaína Leite equipara a performance das camgirls à de Sherazade, protagonista ficcional dos contos persas de As Mil e Uma Noites. Na fase da criação, antes e durante a pandemia, ela própria passou meses atrás de uma câmara a interagir com homens (e poucas mulheres) que pagam por serviços sexuais on demand, tendo concluído que há estereótipos infundados sobre os clientes de prostituição e o comportamento masculino nestes ambientes.

As peças integram a programação do Teatro Viriato, de Viseu, e marcam a estreia portuguesa e europeia da criadora paulista. Mas não serão presenciais. A transmissão é via internet na quinta e na sexta-feira. Dia 13 há sessões individuais de cerca de 20 minutos, sujeitas a marcação, entre as 19h00 e a uma da manhã — intitulam-se Camming 1×1. Dia 14 Janaína Leite propõe uma performance-palestra de quase 70 minutos aberta a todos, a partir das 22h00 — sob o título Camming 101 Noites.

Os dois momentos — há poucas semanas apresentados na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo — culminam um ciclo no Teatro Viriato em que Janaína Leite trouxe, já neste mês de maio e também via online, outros dois espetáculos no contexto do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica. Previa-se que a criadora estivesse presencialmente em Viseu, mas devido às restrições da pandemia não foi possível. Tem feito as apresentações a partir de São Paulo, onde vive, através da plataforma Zoom.

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[“Stabat Mater”, de 2014, foi uma das peças que Janaína Leite levou há dias ao Teatro Viriato:]

No caso de Camming 1×1 e Camming 101 Noites, a hipótese presencial nunca se pôs, porque o objetivo desde o princípio é o de simular o ambiente online em que acontecem as interações pornográficas. Estes trabalhos para maiores de 18 anos, a que Janaína chama “ensaios escopofílicos” (escopofilia é a fruição erótica através da exibição ou observação de atos ou órgãos sexuais, segundo a psicologia), partem de premissas como a revelação da intimidade, o questionar valores éticos e morais, o explorar de temas eternos como a sexualidade ou a relação entre masculino e feminino, e de temas recentes como a relação entre pessoas através de dispositivos eletrónicos.

Da “transa verbal” ao “consolo masturbatório”

“A minha pesquisa nos últimos quatro anos tem sido sobre questões de género, fiz trabalhos com pessoas trans, o meu doutoramento também tem que ver com isso. É um tema que se está a esgotar para mim, tenho um certo cansaço e desejo renovar”, contou Janaína Leite ao Observador. “Nos trabalhos sobre pornografia que vou apresentar em Portugal não pretendi fazer um mapeamento das questões de género. Claro que isso está lá, porque sou mulher e nas plataformas de sexo virtual pago as questões de género aparecem de maneira muito forte. Mas aqui a investigação é sobre que tipo de vínculo se produz nestes espaços online, que imaginários são trabalhados no lugar do tabu, do secreto e do dinheiro, que tipo de mediação é esta que o virtual e o ecrã possibilitam. Sem a presença física do corpo, que performance é esta, que dramaturgias se revelam.”

A criadora rejeita que Camming 101 Noites seja um espetáculo pornográfico. Faz “uso da performance pornográfica, mas não propõe uma experiência pornográfica ao espectador, está num plano dramatúrgico, literário, conceptual, narrativo”. É um objeto artístico sem interatividade, dividido em três momentos: textos de salas de conversação (chats) por onde perpassa aquilo que Janaína Leite classifica como “transa verbal”; explicações da camgirl profissional Anita Saltiel; e um segmento narrativo onde se fica a conhecer a experiência da autora nas plataformas de sexo virtual.

Já a interação em Camming 1×1, essa sim pode alcançar a dimensão explícita. “Há uma busca de relação e se o espectador se colocar num jogo pornográfico, é possível que seja uma experiência pornográfica”, explicou Janaína Leite, em videochamada a partir de São Paulo. “Já fiz duas experiências com o Camming 1×1 para um total de 25 pessoas. O espectador sabe que é uma performance e que sou uma artista, sabe que não está num espaço virtual para um consolo masturbatório, por isso é mais vigilante em relação a si e à performer, não embarca no jogo. Mas também há aquele que imprevisivelmente se lança numa experiência pornográfica, mesmo sabendo do enquadramento artístico.”

“Encontrei horror e beleza, a sexualidade humana é muito complexa.”

“São muito poucos os que assumem uma atitude violenta”

Janaína Leite começou no teatro em 2001 e rapidamente passou a autora dos próprios espetáculos, alguns a solo e outros com elenco. É uma das fundadoras do Grupo XIX de Teatro, de São Paulo. Dentro de dias vai defender a tese de doutoramento em artes cénicas, pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. A tese intitula-se Ensaios Sobre o Feminino e a Abjeção na Obscena Contemporânea, baseia-se em conceitos estabelecidos pelas filósofas Silvia Federici e Julia Kristeva.

Com base nos espetáculos Camming, e nos meses de pesquisa em plataformas de sexo virtual, prepara um livro e um filme. Revelando curiosidade e alguma ironia, disse que precisará de “uns 10 anos” para “processar” todas aquelas experiências, tal a riqueza de estímulos e motivos. “Encontrei horror e beleza, a sexualidade humana é muito complexa”, resumiu.

À pergunta sobre se mudou de opinião acerca do comportamento dos clientes de prostituição, Janaína Leite respondeu afirmativamente e disse que encontrou relato idêntico no livro Teoria King Kong (edição portuguesa de 2016), da escritora e ativista francesa Virginie Despentes. “Ela teve uma experiência como trabalhadora sexual e diz que o olhar dela sobre os homens mudou, porque viu muita fragilidade. Concordo com isso. É um lugar de muita vulnerabilidade e de exposição da parte deles. Muitos homens aproveitam estes espaços para fazerem coisas que não têm coragem de fazer com as mulheres e namoradas ou de conversar com os amigos”, disse Janaína Leite.

“Ao contrário do que eu imaginava, são muito poucos os que assumem uma atitude violenta, até porque os sites permitem bloquear utilizadores. Em geral, muitos deles querem uma relação afetiva, de amizade, completar uma carência. Ou buscam aquilo que podemos entender, dentro das regras sociais que existem, como uma fragilização masculina. São heterossexuais mas querem experimentar posições de inversão, assumir posições ditas femininas, com prazer imaginário anal ou práticas de crossdressing [travestismo]”, concluiu a criadora.