Título: Ernesto de Sousa
Texto: Emília Tavares
Editor: Imprensa Nacional
Páginas: 132
Preço: 19 €

Numa colecção iniciada em 2017 com a obra de Jorge Molder e que num ritmo bianual já elegeu — por esta ordem — Paulo Nozolino, Fernando Lemos, Helena Almeida e José Manuel Rodrigues, a Imprensa Nacional decidiu fixar um cânone da fotografia portuguesa contemporânea levando aos prelos monografias de artistas que, bem vistas as coisas, tinham e têm todos — sem excepção — catálogos e livros que os representam panoramicamente e muito melhor do que um voluminho de 130 páginas pode alguma vez fazer. É uma reductio ad minimum com vantagens que pessoalmente não sou capaz de descortinar, e para todos os efeitos uma concorrência inesperada a editores (museus, fundações e galerias incluídos) que, eles sim, ao longo de anos construíram arduamente, no nosso meio sempre exíguo, precário e pobre, uma biblioteca fotográfica representativa das últimas décadas e que devem ter ainda consideráveis fundos por esgotar. Por outro lado, a chancela pública parece ter querido entrar também num nicho livreiro especializado, hoje muito vivificado por uma comunidade de curiosos que frequenta pequenas lojas de culto que importam livros e revistas e acolhem fotolivros em auto-edição ou afim que nunca entram nas grandes livrarias. Valerá enquanto expansão da presença institucional para áreas menos convencionais, e impulso renovador — também reconhecível na contratação de alguns dos novos ilustradores de grande mérito para a feitura de livros “juvenis” sobre temas patrimoniais —, mas não pode ser confundida com qualquer prioridade de serviço público.

Sob direcção editorial confiada ao produtor cultural e artista Cláudio Garrudo — tornado chefe de divisão da casa editorial do Estado para se ocupar dessa pequena série de publicações —, a colecção “Ph.” anunciou oficialmente há apenas três meses que este ano lançaria monografias respeitantes a Jorge Guerra (1939-) e a Daniel Blaufuks (1963-), mas algo fez dar súbita urgência e prioridade absoluta a este volume sobre Ernesto de Sousa, cujo centenário do nascimento começou há pouco a ser assinalado com um programa variado que tenta trazer de novo à ribalta a figura deste “agitador cultural multimédia” que ninguém — creio — alguma vez estimou ou lembrou como fotógrafo. Aliás, é muito fácil notar que, recorrendo-se a materiais do precário arquivo existente, a proclamada excelência técnica de impressão cai vertiginosamente a pique e que o director editorial da colecção prescindiu da sua habitual prédica autojustificativa inicial, o livro abrindo-se directamente para o ensaio crítico de Emília Tavares. “Não podemos compreender — escreve logo à p. 7 — a fotografia no cômputo da sua obra artística e teórica se a reduzirmos a uma ortodoxia disciplinar das tipologias e a um conceito dogmático da sua aspiração a obra de arte”.

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Estamos, portanto, diante de um teorizador das artes que fez da fotografia um modo de pensar, e um registo útil a trabalhos de história da arte, e o escrito que lemos é ele próprio um exercício de aproximação directa e uma tentativa de legitimação da produção teórica estética de Ernesto de Sousa, que deixou simplesmente de lado a análise directa das imagens fotográficas do artista. Tavares conclui dizendo que “o extenso trabalho de Ernesto de Sousa em redor da fotografia, ou, melhor, da imagem operante, foi um dos mais valiosos e raros contributos para a maioridade ontológica da fotografia portuguesa, abrindo horizontes ainda hoje actuantes sobre o prodigioso significado da imagem na cultura contemporânea” (p. 27). O neo-realista dos sete costados que em 1962 fotografava gente pobre em mercados de rua do Porto (pp. 36-37), e uma década antes o fazia em cópia directa dos velhos vanguardistas russos, em poucos anos deu guinadas e pulos de gigante rumo a uma “estética do fragmento” (sic) e a uma confusa e atabalhoada produção crítica e “activismo estético e político” que aspiraram a plenos pulmões — sem filtros — os ares do tempo e as primeiras modas da mais delirante arte contemporânea, criando deste modo uma reputação exagerada (hoje diz-se expandida) no contexto do emergente galerismo de arte das décadas de 1960-70.

O barroquismo dos seus mixed-media pieces sobre Almada Negreiros na Gulbenkian e o Portugal de 1975 podem surpreender hoje os mais novos, ignorantes do muito do género que se fez então, mas as suas fotografias de nu feminino não têm novidade alguma, e séries interessantes como “Diagonal” de 1984 (pp. 92-93) — certamente uma das suas últimas — perderam-se algures numa contínua avalanche de trabalhos e interesses cruzados e sobrepostos, de difícil disciplina e hierarquia. O mesmo sucede com as cinco fotografias de cena do filme Dom Roberto intervencionadas 26 anos depois, que mereciam outra consideração, além de melhor desafogo gráfico (pp. 85-89). Como fotógrafo dito experimental, o pintor e escultor Ângelo de Sousa (1938-2011) está-lhe muitos furos acima, como provam os seus oito Cadernos de Imagens organizados por Sérgio Mah para uma tiragem dirigida a coleccionadores editada em 2017 pela Tinta-da-China.

Um cânone já não é o que era, e se Ernesto de Sousa merece justamente ser lembrado não será certamente por aqui…

Este livro será lançado esta sábado, 15 de Maio, pelas 15 horas, no jardim das esculturas do Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa.