Dantes, quando um filme tinha uma gestação muito complicada, o estúdio, ou o seu produtor, ou o estreava quase clandestinamente por pouco tempo e depois retirava-o do circuito comercial, ou o atirava diretamente para o mercado do “home video”. Hoje, esses filmes problemáticos são muitas vezes despejados nas plataformas de “streaming”. Foi o que sucedeu a “A Mulher à Janela”, de Joe Wright (“Expiação”, “Ana Karenina”), adaptado do livro homónimo de A.J. Finn, um sucesso de vendas, pelo argumentista, dramaturgo e ator Tracy Letts.

Devido às más reações do público nas sessões de pré-estreia, o produtor Scott Rudin contratou outro realizador e argumentista, Tony Gilroy, para reescrever e refilmar uma série de cenas, mas o resultado revelou-se insatisfatório e a estreia de “A Mulher à Janela” foi sendo adiada. Entretanto, o autor do livro viu-se envolvido numa estranha história em que foi acusado de inventar que sofria de doenças terminais, a pandemia da Covid-19 eclodiu, os cinemas fecharam em toda a parte e Rudin e a 20th Century Fox acabaram por vender o filme à Netflix, onde já está em exibição.

[Veja o “trailer” de “A Mulher à Janela”:]

“A Mulher à Janela” desdobra-se em piscadelas de olho ao universo de Alfred Hitchcock, de “A Janela Indiscreta” a “A Casa Encantada”. São tantas, que se fosse uma pessoa, era daquelas que têm um tique crónico na vista. Mas se Hitchcock visse “A Mulher à Janela”, chorava. Dizer que a fita de Wright é influenciada ou inspirada por este, ou o homenageia, é insultar gravemente o autor de “Intriga Internacional”. “A Mulher à Janela” é uma coisa informe. mortiça e desconexa, tão misteriosa como um ovo estrelado, em ponto morto de emoção e que mal sai do zero no medidor de “suspense”. (E já que estamos com as mãos na massa, aqueles que acusam Brian De Palma de ser um medíocre imitador de Hitchcock, deviam pôr os olhos nesta bela obra).

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[Veja uma entrevista com Amy Adams:]

Amy Adams é Anna Fox, uma psicóloga de crianças que sofre de agorafobia e está sozinha na sua casa em Nova Iorque, após se ter divorciado do marido (Anthony Mackie), que vive com a filha do casal. Quando uma família, os Russell, se muda para o prédio do outro lado da rua, ela começa a vigiá-los, detetando sinais de mal-estar entre o marido e a mulher, e aquele e o filho adolescente. Uma noite, Anna vê a mulher, Jane (Julianne Moore) ser assassinada à facada e chama a polícia. Mas quando esta chega, vem acompanhada pelo Sr. Russell (Gary Oldman) e pela mulher (Jennifer Jason Leigh), que afinal está viva e não é a Jane com a qual Anna conversou em sua casa quando eles se estavam a mudar. E até o rapaz confirma que aquela é a sua mãe.

[Veja uma cena do filme:]

A psicóloga passa por mentirosa e desequilibrada aos olhos dos dois inspetores da polícia que acorreram ao seu pedido de socorro, e não é ajudada quer pelo seu discurso algo confuso, quer por uma revelação dramática sobre o seu marido e a filha, ambos atribuídos aos remédios que está a tomar. Anna começa então gradualmente a duvidar do que viu, e à medida que a confusão se vai instalando na sua cabeça, o filme vai ficando também cada vez mais confuso e desarrumado, denunciando as várias mudanças de que foi objeto e que não fizeram nada para que ficasse emocionante, coerente e verosímil.

A pobre Amy Adams passeia-se pela soturna casa em que se passa a ação com ar de “mas como é que eu me meti neste filme?”, os restantes atores são todos obscenamente subaproveitados, Fred Hechinger, que faz o filho dos Russell, vai tão mal que sentimos pena dele, o argumento mete os pés pelas mãos e até um cego consegue adivinhar quem é o assassino. E o final, tão tonitruante como ridículo, passado durante uma trovoada visivelmente fabricada em estúdio e envolvendo muita facada e um utensílio de jardinagem perfurante, é indigno do mais estereotipado filme de terror “slasher”. Se os maus filmes pagassem imposto, “A Mulher à Janela” tinha que declarar insolvência.

“A Mulher à Janela” está disponível na Netflix