O enviado do secretário-geral das Nações Unidas para Moçambique considerou esta terça-feira que “não era fácil imaginar” que a degradação na segurança na província moçambicana de Cabo Delgado “poderia levar à situação atual“, onde mais de 800.000 pessoas estão deslocadas.

“Eu estava preocupado em 2017 e expressei a minha preocupação ao governo sobre a situação em Cabo delgado, mas temos de admitir que não foi fácil imaginar que a degradação poderia levar à situação atual”, afirmou Mirko Manzoni, num painel da iniciativa “Mafra Dialogues: Diálogos Estratégicos Para Uma Diplomacia Da Paz”.

Temos de considerar que Cabo Delgado é uma província com cerca de dois milhões de habitantes e atualmente temos quase 50% da população deslocada. É uma situação que deve preocupar toda a gente a nível global”, acrescentou.

O representante da Organização das Nações Unidas (ONU) falava no painel “Prevenção e Mediação de Conflitos: O Caso de Moçambique”, no âmbito dos “Mafra Dialogues”, organizados pela Câmara Municipal de Mafra e pelo Instituto para a Promoção da América Latina (Ipdal).

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O enviado da ONU considerou que “foi difícil de imaginar um desenvolvimento deste tipo” e que Maputo “claramente” não estava preparado para dar resposta à insurgência na província de Cabo Delgado.

“É algo que teremos de lidar na região, mas acho que temos também de repensar a nossa abordagem perante a segurança, porque a situação em Cabo Delgado também encontrou um governo claramente não preparado em termos de capacidade de resposta”, sublinhou Manzoni, concluindo que “a solução será complicada” e que há “mais que uma fraqueza para resolver“.

Já o professor e investigador da Faculdade de Direito da Universidade Nova Filipe Pathé Duarte acredita estarem “todas as condições reunidas” para a génese de “um conflito civil“. Pathé Duarte considerou também que é “incrivelmente redutor e perverso (…) analisar a situação em Cabo Delgado com base nos termos de extremismo”.

“Há muitos atores, há muitos interesses e há essencialmente realidades muito mais complexas numa perspetiva social e política”, assinalou, considerando que não se pode reduzir o conflito “a um problema puramente jihadista“.

O padre Angelo Romano, mediador da paz da Comunidade de Sant’Egídio, referiu também que a situação em Cabo Delgado é “uma crise multifatorial” e que há “muitos problemas ao mesmo tempo“, o que significa que “não há uma solução fácil”.

O que Sant’Egídio está a fazer atualmente é apoiar o tecido social de Cabo Delgado, que é exatamente o que os terroristas pretendem corromper. Querem criar um espaço em branco para o preencherem com a sua própria organização, e estão a atacar o tecido social”, destacou o clérigo.

“Nós temos de respeitar o povo de Cabo Delgado que, depois de este tempo todo de sofrimento, ainda está a tentar resistir e está a ajudar os deslocados internos. A maioria dos deslocados internos não estão em campos de refugiados, estão em casas privadas, de familiares ou amigos”, reforçou Romano, que apontou como prioridade “apoiar verdadeiramente as pessoas de Cabo Delgado“, uma vez que “neste momento, elas são o alvo”.

Grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo jihadista Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e 714.000 deslocados, de acordo com o governo moçambicano.

A vila de Palma, a cerca de seis quilómetros do projeto de gás natural da multinacional Total, sofreu um ataque armado em 24 de março, que as autoridades moçambicanas dizem ter resultado na morte de dezenas de pessoas e na fuga de milhares.

As autoridades moçambicanas recuperaram o controlo da vila, mas o ataque levou a petrolífera Total a abandonar por tempo indeterminado o recinto do projeto de gás com início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expectativas de crescimento económico de Moçambique na próxima década.