Nos primeiros meses da pandemia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi perentória: o coronavírus SARS-CoV-2 era transmitido por gotículas e não por aerossóis, ou seja, os vírus eram disseminados por partículas maiores do que cinco micrómetros e não por partículas menores. A ideia era partilhada pelos Centros para o Controlo e Prevenção da Doença norte-americanos (CDC) e por outras organizações de saúde, mas o problema é que a ideia se baseou num erro que já ninguém conhecia a origem, reportou a revista Wired.

Um micrómetro é um milionésimo do metro, o que pode fazer com que esta distinção pareça um mero pormenor, mas, a verdade, é que tem enormes consequências práticas. Para prevenir a infeção por um vírus transmitidos por gotículas, que são pesadas e caem a pouca distância do emissor (a pessoa que tosse ou espirra), recomenda-se lavar as mãos, limpar as superfícies e manter uma distância mínima de um metro (como era recomendado inicialmente em relação ao coronavírus).

Mas assumir que o coronavírus é transmitido por aerossóis implica aceitar que estas partículas mais leves podem ficar suspensas no ar muito mais tempo e viajar mais do que um ou dois metros — daí a importância do uso de máscaras em espaços fechados.

OMS volta a avisar que o coronavírus não se transmite pela via aérea

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“FACT CHECK: #COVID19 is NOT airborne”, divulgou a OMS no Twitter, a 28 de março de 2020. Para a organização, dizer que SARS-CoV-2 era transmitido por aerossóis estava errado. A OMS não aceitava que o vírus ficasse em suspensão no ar ou viajasse mais de um metro. Nem a videoconferência com um grupo de cientistas especialistas na área dos aerossóis fez com que os técnicos da OMS mudassem de ideias.

A reunião online assemelhou-se mais a um campo de batalha, com físicos de um lado e profissionais de saúde do outro, cada um com a sua linguagem técnica. Uma batalha travada num momento errado quando a verdadeira guerra se iniciava na vida real: a pandemia de Covid-19 e o número crescente de infetados, como contou a Wired.

As gotículas também podem viajar longas distâncias

Lindsey Marr esteve nessa reunião e descreveu à revista como tudo aconteceu. Para a cientista, a distinção usada pela OMS e pelos CDC — maior ou menor que cinco micrómetros — estava errada. Porquê? Porque as gotículas, mesmo muito maiores do que cinco micrómetros, podem comportar-se como aerossóis e ficarem suspensas no ar por longos períodos e distâncias, dependendo das condições de calor, humidade do ar ou velocidade de deslocação do ar.

Afinal o novo coronavírus transmite-se pelo ar? 6 respostas para perceber o último anúncio da OMS

A especialista em aerossóis do Instituto Politécnico e Universidade Estadual da Virgínia que esbarrava naquele número em qualquer publicação ficou preocupada com o erro, replicado pela comunidade médica, que dava uma ideia errada de como as pessoas podiam adoecer, fosse com o então novo coronavírus, fosse com outros vírus ou bactérias.

Além de trabalhar com aerossóis, Lindsey Marr também se especializou em doenças infecciosas e estava determinada a esclarecer aquela falácia, mas nenhuma revista científica ou investigador parecia disponível a ouvi-la rebater um dogma com décadas de existência. Até que um investigador chinês, Yuguo Li, deu um empurrão no processo, em dezembro de 2019: o tema era o vírus SARS, de 2003, mas tinha implicações na disseminação de outros vírus.

A origem do erro dos cinco micrómetros

A grande descoberta, no entanto, foi feita por uma aluna recém-formada, Katie Randall, encarregue de fazer uma espécie de “escavação arqueológica” na bibliografia científica que pudesse levar à origem da distinção dos cinco micrómetros. Primeiro, a aluna encontrou um trabalho de William Firth Wells, dos anos 1930, que avaliava quanto tempo demorava uma partícula a cair no chão depois de sair da boca de alguém: poucos segundos para partículas maiores que 100 micrómetros. Mas 100 era muito mais dos que os cinco micrómetros que andava à procura.

Os trabalhos do engenheiro William Firth Wells também contribuíram para o que mais tarde viria a ser aceite: a transmissão do sarampo e da tuberculose faz-se por aerossóis. No caso da tuberculose, no entanto, há uma particularidade, só as partículas mais pequenas, com menos de cinco micrómetros, conseguem penetrar nos pulmões até às células-alvo da bactéria. Em algum momento, no CDC, os técnicos confundiram-se e passaram a definir como o tamanho limite dos aerossóis os tais cinco micrómetros em vez dos originais 100, sugeriu Katie Randall. Um erro que se tem replicado há cerca de 60 anos.

Coronavírus viaja pelo ar e pode ser inalado por alguém a mais de dois metros, reconhece a CDC

Lindsey Marr tinha a informação que precisava. Só precisava de convencer a comunidade científica a nível mundial e duas das mais importantes organizações de saúde de que estavam errados. Só. Em julho de 2020, juntamente com 238 cientistas e médicos, escreveu uma carta onde alertava para a importância da recomendação do uso de máscara e de ventilação. Isso fez com que a OMS admitisse a possibilidade de haver transmissão por aerossóis, mas não mais do que isso.

Em dezembro, Maria Van Kerkhove, que gere a resposta da OMS à Covid-19, disse que a organização tinha sempre prestado atenção à transmissão por aerossóis, por isso recomendava uma boa ventilação. Mas só a 30 de abril de 2021, sem conferência de imprensa nem divulgação nos media, a OMS atualizou a sua página para incluir a informação de que o SARS-CoV-2 se podia transmitir tanto por aerossóis como por gotículas. Os CDC, no início de maio, fizeram o mesmo tipo de atualização, com idêntica descrição.