Após várias transformações para dar resposta a milhares de doentes com Covid-19, o Hospital Santa Maria, em Lisboa, regressou à normalidade com corredores cheios de utentes para consultas externas, realização de exames e cirurgias.

Parecem distantes os dias em que as filas de ambulâncias com doentes Covid-19 se acumulavam junto ao Serviço de Urgência devido ao aumento de casos no pico da pandemia, no final de janeiro.

Agora, vive-se um cenário completamente diferente.

A procura por este serviço de urgência dedicado à Covid-19, por onde passaram cerca de 30 mil pessoas, é agora residual para descanso dos médicos, enfermeiros e outros profissionais que ali viveram situações de grande pressão e momentos de desalento.

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“A sobrecarga assistencial de doentes Covid-19 diminuiu (…), espelhando a diminuição do número de contágios no país e, sobretudo, aquilo que é notório é a diminuição de doentes com doença Covid-19 moderada, grave ou crítica com necessidade de internamento”, disse à agência Lusa a diretora do Serviço de Urgência do Centro Hospitalar Lisboa Norte.

Ao mesmo tempo, assiste-se desde março a um aumento da afluência de doentes não-Covid, que tinham diminuído as idas ao hospital e às urgências, apesar da atividade assistencial se ter mantido, adiantou Anabela Oliveira.

Ressalvando ser uma constatação de quem está todos os dias nas urgências, a médica afirmou que “a carga de doença tem sido muito elevada” neste serviço.

Têm surgido doentes com situações muito graves, nomeadamente casos de cancro que surgem sem diagnóstico em fase muito avançada da doença”, lamentou.

Sobre a pressão vivida nos últimos meses, a médica disse que para os profissionais “foi difícil” em termos psicológicos e de trabalho.

Não esquecemos ainda os momentos que vivemos em janeiro e fevereiro em que tínhamos necessidade de internar doentes e não tínhamos sítio para os internar. A carga dos doentes, das famílias, das ambulâncias ainda está muito impregnada na nossa pele”, desabafou Anabela Oliveira.

Enfermeiro gestor do Serviço de Urgência, Carlos Neto disse ser com “satisfação e alegria” que observa a realidade agora vivida no hospital, após longos meses na linha da frente no combate à pandemia, tal como Anabela Oliveira e tantos outros.

Apesar de estarem “formatados para trabalhar” num serviço onde o dia-a-dia é marcado por “períodos altos e baixos”, Carlos Neto reconhece que é “uma situação de grande alívio, neste momento, para todos”.

Se há uns tempos, não tínhamos previsibilidade de termos uma luz ao fundo do túnel, aquilo que se pode dizer agora é que com este alívio, se as coisas continuarem a correr da forma como tem acontecido nos últimos tempos, se calhar podemos vislumbrar a curto prazo ou a médio prazo alguma coisa de bom para todos”, salientou o enfermeiro.

Na sala que dá acesso ao Departamento de Coração e Vasos, dirigido pelo cardiologista Fausto Pinto, vários utentes aguardam pela sua vez, uma imagem que lembra os tempos pré-pandemia.

À Lusa, Fausto Pinto alertou para os impactos da Covid-19 nos doentes com problemas cardiovasculares devido à suspensão da atividade não urgente no início da pandemia e ao medo que os afastou dos hospitais.

Dados mundiais mostram que houve doentes que morrerem em casa ou tiveram situações complicadas porque, por medo, não foram ao hospital e quando iam, já era tarde, lamentou o também presidente da Federação Mundial do Coração.

Após esta fase, procurou-se recuperar a atividade: “No nosso departamento temos conseguido manter uma atividade com recuperação de lista de espera e, neste momento, temos praticamente o nível que tínhamos antes da pandemia”.

Mas esta recuperação não tem acontecido da mesma forma em todos os países e há dados segundo os quais “as doenças cardiovasculares são as que mais sofreram com este problema”, prevendo-se “uma espécie de tsunami” durante os próximos anos que “vai levar tempo a recuperar”, advertiu Fausto Pinto.

Este é um problema global “muito sério” e para o qual “os sistemas de saúde se têm que adaptar e preparar para tratar este conjunto muito significativo de doentes” e “tentar ao máximo minimizar o impacto que esta pandemia teve e está a ter”.

Fausto Pinto apelou às pessoas com problemas cardiovasculares para irem ao hospital porque “são situações tratáveis e para as quais há excelentes tratamentos” e para se vacinarem contra a Covid-19.

O Serviço de Reumatologia também já retomou a atividade, o que se reflete no número de utentes que aguardava consulta na sala de espera, cumprindo as regras de segurança exigidas pela pandemia.

“Somos capazes de estar este ano numa perspetiva de cerca de 30 mil consultas por ano, que é mais ou menos o que fazíamos anteriormente”, disse o diretor do serviço, João Eurico da Fonseca.

O reumatologista contou que alguns doentes, após a infeção, ficaram com “sintomas difusos no corpo, dolorosos alguns, mas também na pele e de cariz vascular”.

Isso é um aspeto curioso desta infeção que não é exclusivo deste vírus. O vírus da hepatite B, da hepatite C, o HIV são vírus que nós conhecemos há muitos anos e que também simulam doenças reumáticas tal como este vírus”, adiantou.

Para João Eurico da Fonseca, é preciso “entender muito bem” se se se está perante “uma manifestação tardia da infeção que ocorreu ou se pelo contrário se está a assistir ao início de uma doença crónica”.

“Isto sim é um desafio e é preciso estar atento para não estarmos a atrasar o diagnóstico de doenças que necessitam de um outro tipo de abordagem”, rematou.

Santa Maria ganhou maior prontidão graças à capacidade de adaptação

O Hospital Santa Maria, em Lisboa, tem hoje um estado de prontidão “bastante maior” do que tinha antes da pandemia graças à sua capacidade de adaptação, que permite ter estruturas e equipas preparadas num curto espaço de tempo.

Para dar resposta aos milhares de doentes com Covid-19, mas também aos outros doentes, o Hospital Santa Maria foi obrigado a fazer várias transformações nos serviços, a apostar no apetrechamento das estruturas, o que representou um investimento de quase 10 milhões de euros, disse em entrevista à agência Lusa o presidente do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHULN).

A pandemia (que se iniciou em março de 2020) deu-nos uma experiência enorme em relação a essa capacidade operacional, porque tivemos que adaptar e abrir num curto espaço de tempo cerca de 15 enfermarias e cinco unidades de cuidados intensivos”, salientou Daniel Ferro.

Hoje, o hospital tem essa experiência de que se precisar de uma unidade de cuidados intensivos o tempo mínimo que precisa para a montar são três a quatro dias e no caso de uma nova enfermaria 24 a 48 horas.

“Isto é a experiência de quem passou por um plano intenso de ativação de enfermarias e de cuidados intensivos e também a experiência dos nossos profissionais”, salientou Daniel Ferro.

Houve uma redefinição dos circuitos, reconstituição das equipas, instalação de equipamentos e “toda essa experiência acumulada” dá “uma confiança neste estado de prontidão para prazos muito, muito, muito curtos de instalação”.

“Hoje, o hospital tem um estado de prontidão bastante maior do que tinha graças à sua capacidade de adaptação e esta foi no fundo a grande lição que nós tirámos desta pandemia”, salientou.

Outra grande lição, referiu, são os profissionais poderem vir a ser chamados para prestarem funções em outras áreas diferentes do seu trabalho normal, “o que deu às equipas uma maior flexibilidade funcional”.

Todas estas mudanças representaram gastos “muito elevados”, mas, segundo Daniel Ferro, “ficou esse património, esses espaços e essas unidades” que podem voltar a ser necessários.

Sublinhou ainda que este “gasto significativo” terá que ser gerido ao longo do tempo para não afetar no futuro o normal funcionamento do CHULN, que integra os hospitais Santa Maria e Pulido Valente.

Relativamente à urgência dedicada à Covid-19, instalada em frente ao Serviço de Urgência Central, Daniel Ferro afirmou que “é uma estrutura com grande capacidade”, onde estão instalados 53 postos de trabalho e por onde passaram cerca de 30 mil doentes.

Apesar de ter agora níveis residuais de atendimento, “é uma linha de atendimento enorme” que só deverá ser desmantelada quando houver a “segurança de que não haverá regressão deste fenómeno”.

Já se consegue ver a luz ao fundo do túnel é verdade, mas ainda assim há que manter o estado de prontidão para qualquer retrocesso que possa existir, mesmo que não seja a níveis tão intensos, é uma estrutura que do ponto de vista da prevenção, da cautela, devemos manter em prontidão por mais algum tempo”, defendeu.

No espaço de um ano, também passaram pelos cuidados intensivos mais de 500 doentes com “níveis de gravidade intensa (90% ventilados)”, dos quais 80% sobreviveram, “um indicador de qualidade muito bom em qualquer parte do mundo”.

Quanto aos atendimentos e internamentos por Covid-19, Daniel Ferro disse que estão a um nível assistencial “muito baixo” semelhante ao início da segunda semana de março 2020.

“Temos um número muito residual de pessoas internadas e o número de pessoas também tratadas em urgência é semelhante”, o que permite relançar a atividade normal para níveis anteriores à pandemia ou superiores, como está a acontecer, por exemplo, na área cirúrgica.

Daniel Ferro espera recuperar num espaço de tempo mais curto do que se pensava toda a atividade cirúrgica que “ficou um pouco adiada por virtude da mobilização de meios para assistência à Covid”, bem como as consultas.

As pessoas hoje têm uma consulta em menos tempo, são chamadas para as prioridades clínicas também em menos tempo, portanto, estamos confortáveis porque temos hoje níveis de acessibilidade melhores do que aqueles que existiam antes da pandemia”, destacou.

Para o presidente do CHULN, “os serviços de saúde saem mais fortes desta pandemia, porque deram prova de que ao trabalhar no limite foi dada uma resposta de um bom Serviço Nacional de Saúde e isso hoje deve ser valorizado pela população”, considerou.

“São lições positivas que nós tiramos da pandemia e que nos faz sentir com mais confiança, mais confortáveis porque sabemos que estamos melhor preparados”, rematou.