“Inaceitável.” O surgimento de uma placa, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, gerou uma onda de protestos entre os médicos, com o bastonário da Ordem à cabeça. Em causa está a inscrição com “o agradecimento aos doadores que apoiaram o reforço do Serviço de Medicina intensiva”, inaugurado a 21 de maio. O problema são os nomes que se seguem, ou melhor, o último doador da lista: Tabaqueira, a empresa portuguesa produtora de cigarros. “Temos de repudiar e lamentar que um local público, do Estado, um hospital sem fumo, esteja a aceitar dinheiro da Tabaqueira e que tenha uma placa de publicidade àquela empresa à entrada de um serviço de medicina intensiva”, diz ao Observador o bastonário da Ordem dos Médicos.

Embora legalmente nada proíba uma unidade hospitalar de receber donativos de uma produtora de tabaco, “é moralmente e eticamente inaceitável” que tal aconteça, sublinha Miguel Guimarães. E é exatamente a placa que incomoda os médicos e que motivou já várias ações: a publicação de uma carta de repúdio — assinada pelo bastonário Miguel Guimarães, por Carlos Robalo Cordeiro, vice-presidente da Sociedade Europeia de Pneumologia, por Filipe Froes, coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem e por Vítor Rodrigues,  presidente da Liga Portuguesa contra o Cancro — e a respetiva denúncia às mais altas instância da Saúde.

Miguel Guimarães espera que as autoridades competentes, como o Ministério da Saúde, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e até mesmo a administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte se pronunciem sobre a situação. “Se a Ordem dos Médicos tivesse uma placa deste género a agradecer o apoio da Tabaqueira era notícia em todo o mundo.”

O Hospital de Santa Maria fala em lapso e, em resposta ao Observador, garantiu que a nova unidade “não tem qualquer equipamento oferecido pela empresa Tabaqueira”.

A placa que a Ordem dos Médicos contesta

“Não devemos aceitar dinheiro da Tabaqueira, de maneira nenhuma”

O hospital de Lisboa não é o único do país que recebeu donativos da subsidiária da Philip Morris International.

Há exatamente um ano, em maio de 2020, Miguel Matos, diretor-geral da Tabaqueira, anunciava, numa entrevista ao Dinheiro Vivo, que a empresa portuguesa produtora de tabaco tinha feito contribuições monetárias e em género a várias unidades hospitalares. Na lista, para além do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (Santa Maria e Pulido Valente), incluia-se o Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra). A empresa doou ainda equipamentos de proteção individual aos profissionais de saúde em unidades hospitalares na zona da grande Lisboa e do Hospital São João, no Porto.

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Nos diversos donativos, incluia-se, à data, a cedência temporária de uma viatura à Médicos do Mundo, em Lisboa.

“Este suposto mecenato da Philip Morris, os donos da Tabaqueira, não passa de um operação de branqueamento de uma realidade há muito conhecida e demasiado trágica para ainda haver qualquer tipo de dúvidas sobre como atuar”, considera o pneumologista Filipe Froes em declarações ao Observador. “Aqui nunca poderá haver diferença entre a teoria e a prática. Como cidadão e médico nunca poderia aceitar ver o meu nome naquelas circunstâncias”, acrescenta o coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Médicos.

Já o bastonário dos Médicos diz que qualquer donativo daquela empresa deve ser recusado. “Não devemos aceitar dinheiro da Tabaqueira, de maneira nenhuma”, diz Miguel Guimarães considerando, ainda assim, que as situações são diferentes quando a doação é feita de forma anónima, sem ser publicitada numa placa. Apesar disso, o melhor é não aceitar. “A Tabaqueira chegou a querer, por um valor imenso, fazer publicidade na revista da Ordem. Disse logo que não. A Tabaqueira tenta, faz parte do que é ser uma empresa poderosa e forte na área da comunicação. As instituições é que têm de ter cuidado com isso”, diz o bastonário lembrando que o tabagismo matou 7,7 milhões de pessoas no mundo em 2019. O número foi avançado por um estudo da revista Lancet, publicado esta quinta-feira, e que conclui que nesse ano o número de fumadores aumentou para 1,1 mil milhões.

“Se há outros hospitais a receberem donativos da Tabaqueira devem ser denunciados. Devemos manter os distanciamentos. Mesmo que a doação seja feita de forma anónima é uma situação muito discutível. E é um desrespeito pelos médicos que tratam doentes com cancro do pulmão, da bexiga, com doença pulmonar obstrutiva crónica”, sublinha Miguel Guimarães.

A carta e a resposta do Santa Maria

A carta de repúdio começa por lembrar que o tabaco ocupa a primeira posição na lista da Organização Mundial de Saúde dos cinco principais fatores de risco que estão na origem das cinco principais causas de doenças não transmissíveis, a um nível global. Recorda também que se assume a proibição da utilização de quaisquer produtos relacionados com o tabaco no perímetro dos nossos hospitais. “Assim, foi com perplexidade e apreensão que se registou a presença da Tabaqueira no elenco dos doadores que apoiaram a recente ampliação de uma Unidade de Cuidados Intensivos num Hospital do SNS”, lê-se na carta a que o Observador teve acesso.

“Os fins não podem justificar os meios e urge um esclarecimento sobre a aceitação desta doação que não dignifica o SNS nem a sociedade, e que ofende quem perdeu familiares por doenças relacionadas com o tabaco, pelo que se lamenta e repudia esta situação inaceitável”, termina a missiva.

Do lado do hospital de Lisboa, garante-se que a nova unidade — inaugurada pela ministra da Saúde — não tem qualquer equipamento oferecido pela empresa Tabaqueira.

“O Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte recebeu durante a primeira fase da pandemia de Covid-19, no primeiro semestre de 2020, mais de uma centena de doações de empresas e de outras entidades, que ajudaram a reforçar a resposta dos serviços num período de grande procura de material clínico”, lê-se na resposta escrita enviada ao Observador. Foi nesse período que foi recebido o donativo da Tabaqueira que foi utilizado noutras áreas do Centro Hospitalar.

Assim, a unidade hospitalar “lamenta o lapso” que resultou na inclusão da Tabaqueira na placa dos doadores junto à nova Unidade de Cuidados Intensivos, onde surgem também os nomes do futebolista Cristiano Ronaldo e do seu agente Jorge Mendes. O nome dos doadores, segundo explicou fonte hospitalar, aparecem ordenados alfabeticamente, não tendo sido revelados que valores foram doados por cada um deles. “O CHULN lamenta ainda qualquer equívoco causado e que possa envolver a presença da sr.ª ministra da Saúde na inauguração da obra”, que aconteceu na sexta-feira passada.