Os especialistas ouvidos pelo Observador após a reunião no Infarmed concordam que a matriz de risco que guia o Governo no desconfinamento se mantenha inalterada, tal como os conselheiros científicos do Executivo transmitiram esta manhã através de Andreia Leite, epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

Tanto Francisco Antunes, infecciologista do Instituto de Saúde Ambiental, como Tiago Correia, especialista em saúde internacional do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, entendem que a incidência e o R(t) continuam a ser os melhores indicadores para descrever a situação epidemiológica em cada momento. Em concordância com Andreia Leite, o médico argumenta que esses continuam a ser os dados por que se regem os outros países, em conformidade com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC).

O conselho de manter a matriz de risco tal como está neste momento foi transmitido pouco antes de Henrique Barros, epidemiologista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto ter dito que “a infeção circula muito menos, a carga de infeção é muito mais baixa, mas temos de estar atentos à natureza cíclica destes fenómenos”: “Tudo leva a crer que a infeção se tornou endémica, ou pelo menos tornou-se endémica socialmente”, afirmou.

Que se tenha tornado “endémica socialmente”, não do ponto de vista epidemiológico, Tiago Correia concorda: é o que evidencia o relaxamento das pessoas em relação à circulação do vírus. “Há um ano, a situação epidemiológica era semelhante à que se vive agora, mas o medo fazia com que os comportamentos fossem muito diferentes. Agora temos uma ideia mais precisa e rigorosa do vírus e o dia a dia diz-nos o que podemos fazer para evitar uma infeção”.

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Mas Francisco Antunes rejeita que a Covid-19 já esteja em equilíbrio com os humanos. Pelo menos não é isso que deixam transparecer os dados transmitidas pelas autoridades de saúde internacionais, nem é o que demonstra a realidade fora das fronteiras portuguesas. “A pandemia ainda não terminou, isto é muito claro para mim. Só vai terminar quando tudo estiver controlado em termos de risco de aumento de número de casos, de hospitalizações e de mortes. Ainda não estamos nesse ponto — nem aqui em Portugal, nem no resto do mundo”.

Globalmente, o número de casos e mortes está a descer há 4 semanas consecutivas, mas tanto a incidência como os óbitos continuam altos — e a aumentar substancialmente em alguns pontos do planeta, como na Índia. E as variantes continuam a ser preocupantes — João Paulo Gomes, do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), partilhou na reunião que o vírus está a adaptar-se à população imunizada e que quase todas as linhagens em circulação neste momento têm mutações capazes de ludibriar o sistema imunitário. Por isso é que o infecciologista considera que se continua longe do alívio endémico — mais um motivo para deixar a matriz de risco tal como está.

Mas Tiago Correia só defende que a matriz de risco atual — um padrão colorido, do verde para o vermelho, de acordo com o número de novos casos a cada 14 dias por 100 mil habitantes e com o risco de transmissão — porque acredita que ela terá de sofrer outras alterações, muito mais profundas, em breve: “Criar alterações intercalares iria ser prejudicial para a comunicação, as pessoas já se habituaram a este esquema”, justifica o perito em entrevista ao Observador.

As alterações, defende ele, devem surgir quando a vacinação de todas as pessoas acima dos 60 anos e todas as indivíduos vulneráveis a partir dos 50 estiver completa. Até agora, antes da imunização destas pessoas, o risco estava na disseminação do vírus, que podia atingir os mais frágeis e causar-lhes quadros clínicos graves ou mesmo a morte, sobrecarregando o Serviço Nacional Nacional e comprometendo a resposta dos profissionais de saúde. Com a vacinação, “esse deixa de ser o fator de risco”. E passam a ser outros.

Tiago Correia aponta três novos indicadores: a perda de anticorpos contra o SARS-CoV-2 nas pessoas que já foram vacinadas (sobre as mais velhas, que foram das primeiras a ser imunizadas e são mais frágeis), os casos de imunizados que mesmo assim ficam infetados — monitorizando também se chegam a ser internadas ou mesmo a perder a vida — e a capacidade para sequenciação genómica nas fronteiras, de modo a identificar variantes preocupantes. O número de internamentos e as mortes por Covid-19 mantêm-se como bússolas importantes na vigilância epidemiológica.

Mesmo assim, o especialista em saúde internacional tece críticas à reunião desta manhã e entende que os peritos “não foram capazes de dar aos políticos aquilo que eles precisavam para tomar decisões”. Tiago Correia considera que é preciso delinear regras para a continuação do desconfinamento, mas sustenta manter as regras para se “viver em bolha” não faz sentido. “Dizem que devemos manter a matriz de risco, mas não dizem durante quanto tempo. Temos critérios de desconfinamento, mas não há um horizonte temporal para eles serem aplicados. Temos de dizer às pessoas o que fazer, senão cada um vai começar a reger-se pelas suas próprias regras”, alertou.

Foi isso que Marcelo Rebelo de Sousa disse após a intervenção dos especialistas, numa declaração que, desta vez e ao contrádio do que é habitual, foi transmitida publicamente. Embora tenha agradecido o trabalho dos peritos e elogiado a qualidade das apresentações, também apontou que a “opinião pública precisa de mais explicações para perceber melhor as medidas sanitárias”: “É evidente que a vida tendencialmente é um valor absoluto, em casos em que isso é evidente em termos de risco de vida e risco de stress nas estruturas de saúde. Começa a ser menos evidente à medida que a ponderação é mais equilibrada”.

O Presidente da República considerou que “é muito difícil mesmo nesta sessão, que teoricamente é sanitária”, tomar decisões apenas com base na questão da saúde. Para o futuro, prosseguiu Marcelo, será “crescentemente necessário explicar à perceção pública o que é cada vez menos uma evidência”.