O padre Hans Zollner, presidente do Centro para a Proteção de Menores, afirmou que o trabalho da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) no âmbito dos abusos sexuais a menores “é suficiente para cumprir regulamentos”, mas é necessária uma mudança de mentalidade.

“O que tem sido anunciado e o que tem sido feito é suficiente para cumprir com os regulamentos. O que espero é que a Conferência Episcopal e as congregações religiosas não se limitem a cumprir com as obrigações da lei canónica”, disse, considerando que “isso não é suficiente, é necessária uma mudança de mentalidade, porque às vezes a impressão é que as coisas são feitas só ou maioritariamente devido à pressão que se sente”.

O jesuíta está hoje em Fátima, concelho de Ourém, num encontro com bispos e membros das comissões diocesanas de proteção de menores e adultos vulneráveis, para falar sobre a forma como o tema deve ser encarado na vida e na missão da Igreja. Além de presidente daquele centro, integrado no Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Gregoriana, Zollner é membro da Comissão Pontifícia para a Tutela dos Menores.

“Cumprir meramente a letra dos regulamentos não é tudo. Devemos entender, nós próprios, que temos de cuidar das pessoas que são mais vulneráveis”, prosseguiu, salientando que “a proteção de menores e de pessoas vulneráveis dentro da Igreja e da sociedade é uma parte integrante da missão da Igreja”.

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No entender de Hans Zollner, “esta nova mentalidade ainda não está suficientemente arraigada na prática da Igreja, mesmo entre os fiéis”.

Questionado se a Igreja ainda tem um caminho a percorrer para acudir às vítimas de abusos sexuais por elementos da Igreja, respondeu que “há bons exemplos no mundo onde as vítimas são verdadeiramente ouvidas”.

“Em algumas línguas, como por exemplo em português, existe a distinção entre ouvir e escutar. Ou seja, escutar é muito mais do que simplesmente ouvir, é abrir o coração e a mente, com empatia, à realidade sofrida por uma outra pessoa”, observou.

Segundo o sacerdote, “as vítimas contam histórias devastadoras e acompanhá-las, tendo elas essas feridas, é um enorme desafio”.

“O que não percebemos até agora é o trauma espiritual, a dor espiritual das pessoas que acreditavam em Deus, acreditavam na Igreja, acreditavam em padres e bispos” e essa confiança “foi quebrada ou destruída completamente”, declarou.

“Nós não nos damos conta, por vezes, como Igreja, como pode ser grande o sofrimento espiritual. Por isso, precisamos de perceber que escutar consome muito tempo, gasta muita energia. Não é possível escutar alguém que foi violado com 9 ou 14 anos e, imediatamente a seguir a esta escuta, continuar como se nada tivesse acontecido”, referiu, adiantando: “O que eu aprendi disto, de escutar várias vítimas, é que Jesus Cristo sofre com elas e que as acompanha, mesmo nos momentos mais difíceis”.

O responsável revelou que, em 01 de setembro, o Instituto de Antropologia da Universidade Gregoriana passará a ser Instituto de Antropologia e Estudos Interdisciplinares sobre Dignidade Humana e Cuidado.

“Queremos alargar o nosso horizonte, tendo em consideração a realidade do sofrimento e a lesão da dignidade humana, e promover o cuidado para todas as pessoas vulneráveis. Nós comunicamos com base no que aprendemos com as vítimas. Precisamos que as vítimas nos desafiem, que nos critiquem, porque só assim podemos caminhar com honestidade para algo como curar ou recomeçar”, sustentou.

Hans Zollner acrescentou que “os delitos do passado têm sido o motivo pelo qual a Igreja está a passar por um processo de purificação, de transparência e honestidade”.

Em maio de 2019, o então presidente da CEP, Manuel Clemente, garantiu que todas as dioceses iriam criar instâncias para tratar os casos de abusos sexuais.

Já em 01 de janeiro último, a CEP publicou novas diretrizes para “proteção de menores e adultos vulneráveis”, nas quais se define que a prevenção de abusos deve ser uma prioridade, sendo preciso tratar todos os casos “com mecanismos eficazes” e “ter conhecimento aprofundado” dos candidatos ao sacerdócio.

Segundo o documento, que substitui o de 2012, todos os que exercem alguma função na Igreja devem ter condutas que “assegurem a todos um ambiente absolutamente seguro”, defendendo ser urgente “promover uma formação específica dirigida aos agentes pastorais, aos que lidam com menores e adultos vulneráveis e aos que tutelam a proteção de menores em todos os níveis da ação eclesial”.

“Façam o vosso trabalho de casa antes que escândalos rebentem”

O padre Hans Zollner aconselhou ainda bispos e superiores religiosos a fazerem o trabalho de casa no âmbito dos abusos sexuais a crianças, para evitar que os escândalos rebentem.

“O que digo aos bispos e aos superiores religiosos é ‘façam o vosso trabalho de casa já, antes que os escândalos rebentem. Porque isto vai ficar connosco, isto não vai desaparecer amanhã, não vai acabar em dois anos, em cinco anos'”, afirmou o também presidente do Centro para a Proteção de Menores, integrado no Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Gregoriana.

Hans Zollner falava à Lusa a propósito do encontro sobre a proteção de menores na vida e na missão da Igreja que reúne hoje em Fátima (Ourém) bispos e membros das comissões diocesanas de proteção de menores e adultos vulneráveis, organizado pela Conferência Episcopal Portuguesa.

Questionado sobre o facto de recorrentemente serem tornados públicos escândalos relativos a esta matéria e se seria preferível uma grande investigação em todas as dioceses do mundo, para evitar a sucessão de casos durante anos e anos, o jesuíta observou que “a Igreja Católica tem 1,3 mil milhões de membros, existe em 190 países”.

“A situação jurídica, a situação cultural, as línguas são muito diferentes. Por isso, não vejo que seja possível que tal possa acontecer de uma vez por todas em todas as igrejas locais”, argumentou.

Acrescentando que “em muitos países do mundo ainda não” se começou “a falar sobre isto na Igreja”, o sacerdote insistiu que se faça o trabalho de casa, pois “se [os responsáveis] não o fizerem agora, terão de o fazer dentro de 10 anos, 15 anos, no tempo que for” ou os “sucessores terão de o fazer”.

“Mas, a dada altura, o escândalo será muito maior do que seria agora”, alertou, dizendo compreender que “tenham medo agora, que não tenham a coragem de se confrontarem” com eles próprios e aos seus fiéis.

No entender de Hans Zollner, se os responsáveis o “fizerem agora, prestarão um serviço muito melhor à Igreja do que tentar manter a situação debaixo do tapete”, pois ela “virá à tona mais tarde ou mais cedo”.

“A verdade virá ao de cima em algum momento”, avisou, referindo que este trabalho no âmbito da investigação e prevenção dos abusos por parte de elementos da Igreja pode ser feito de “uma forma em que seja possível aprender com outras experiências”.

O padre alemão lembrou que no seu país “até 2010 os bispos lidaram com isto aqui e ali”.

“Vi como, nesse período, houve grande confusão, mesmo entre os bispos”, constatou, referindo depois notícias de sexta-feira de Colónia que dão conta de uma visita apostólica, “para procurar perceber como os crimes do passado podem não ter sido punidos adequadamente”.

Para Hans Zollner, essa “visita apostólica é uma boa notícia pela coerência e a perceção da Igreja, ainda que seja dolorosa”.

À pergunta se este tema já não é um tabu na Igreja Católica, respondeu: “Nalgumas áreas da Igreja, e em algumas áreas do mundo, ainda continua a ser um tabu, ainda que entre representantes e líderes da Igreja isso não devesse ser possível, porque já em 2019 o Papa ‘chamou a atenção’ dos presidentes das conferências episcopais sobre este tema”.

“Em seguida, tivemos uma nova lei em 2019. Atualmente, está para ser publicada uma reforma das leis penais do Direito da Igreja, que é a revisão do livro 6 do Código de Direito Canónico. Então, podemos dizer que existe uma contínua evolução de sensibilização que se traduz nas normas da Igreja, ainda que continue a ser um tema desconfortável dentro da Igreja e da sociedade”, admitiu.

Hans Zollner é, desde 2014, membro da Comissão Pontifícia para a Tutela dos Menores, criada nesse ano pelo Papa Francisco, sendo ainda consultor na Congregação para o Clero.

O combate aos abusos sexuais de menores foi redobrado pelo Papa Francisco que, em 2019, considerou o crime como “uma das pragas do nosso tempo” e lamentou que tenha implicado “vários membros do clero”.

A declaração foi feita após uma série de escândalos de abusos sexuais do clero, especialmente nos Estados Unidos e no Chile, ter marcado o ano de 2018.

Francisco convocou os presidentes de conferências episcopais de todo o mundo para uma cimeira, realizada em fevereiro de 2019, sobre “proteção de menores”, uma reunião que visou “ser um passo no caminho da Igreja, para esclarecer os factos e suavizar as feridas causadas por tais crimes”.