Título: Despertar os Leões
Autor: Ayelet Gundar-Goshen
Editora: Elsinore
Páginas: 375
Preço: 21,98€

Despertar os Leões, o segundo romance da israelita Ayelet Gundar-Goshen, conta a história de Eytan Grien, um neurocirurgião casado com uma inspetora da polícia de Be’er Sheva que, certo dia, ao regressar a casa depois de mais um banco extenuante, atropela mortalmente um refugiado eritreu e foge do local do acidente. Por azar, deixa cair uma carteira, o que permitirá à mulher do morto encontrá-lo, chantageando-o para prestar assistência aos refugiados da cidade numa tenda de campanha clandestina.

Desde as primeiras páginas, compreendemos que não será indiferente que o protagonista seja médico, não apenas pelo facto de a sua atividade profissional ser decisiva para o enredo, mas acima de tudo pela absoluta aleatoriedade com que a medicina se confronta todos os dias, uma aleatoriedade à qual tenta impor pontos de exclamação, que a vida vai arredondando ao ponto de se tornarem em meras marcas interrogativas.

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Mais do que sobre Israel ou o drama dos refugiados, Despertar os Leões é sobre o pouco controlo que temos sobre as nossas vidas. Como Eytan Grin percebe desde antes até do acidente, a ilusão de domínio acerca do nosso próprio destino é apenas um mecanismo tranquilizador para que achemos que de alguma forma somos nós quem segura as rédeas, quando na verdade tudo o que tomamos como certo pode mudar drasticamente de um segundo para o outro. Quando Eytan Grin atropela um refugiado no meio do nada, procura racionalizar, compartimentalizar e relativizar, de forma a que aquele enorme percalço não extravase e ocupe, de repente, toda a sua vida. Procura isolar o desastre para que assim consiga continuar a ser quem era até àquele momento. Mas esta tentativa de colocar pensos rápidos em cima de fraturas expostas tem invariavelmente um resultado: a entrada num fosso cada vez mais fundo, do qual talvez só se possa sair, com sorte, assumindo a falha e reconhecendo que é impossível escapar aos erros do nosso passado fugindo desesperadamente em frente.

É bastante peculiar o papel que é reservado para a mulher do eritreu que Eytan mata, uma vez que, até perto do fim do romance, Sirkit é vista quer pela narradora quer por Eytan como uma espécie de deus ex machina em cima de quem Eytan procura depositar as culpas e não como uma pessoa de carne e osso. Como uma espécie de esfinge que vem para fazer o drama progredir e não como parte do drama (aliás, a parte mais significativa do drama, a parte que, faça o que fizer, não tem como escapar a uma tragédia que constantemente desvia os nossos olhos para quem mais se parece com a autora e com grande parte dos seus leitores e que, precisamente por isso, mais instrumentos tem para escapar a toda esta sequência de erros e azares), e não como alguém a tentar fazer o que pode num mundo que se vê forçada a encarar como um refúgio e não como uma casa.

Contudo, ainda que Ayelet Gundar-Goshen tenha construído um enredo notável, o que mais sobressai no romance é a maneira como a escritora consegue captar momentos relativamente triviais para ver neles a confluência de vários caminhos que densificam as personagens. Ao lermos Despertar os Leões, temos a sensação clara de que os momentos mais fulgurantes do livro surgem quando nada de objetivamente importante para a narrativa está a acontecer.

Ayelet Gundar-Goshen não se preocupa em demasia em tornar a narrativa extraordinariamente credível. Como já referimos anteriormente, Eytan é descoberto pela eritreia porque deixa cair a carteira no lugar do crime e esse processo de atropelamento e fuga será depois investigado pela sua própria esposa porque, para a escritora, mais importante do que convencer os leitores de que a história de facto ocorreu ou de que pelo menos poderia ter ocorrido é revestir as personagens de ossos e carne, de forma a que se crie uma empatia que nenhuma sequência de eventos bem orquestrada consegue garantir. Sendo uma polícia competente, Liat não consegue entender o que está bem diante dos seus olhos, o que só causará espanto ao tipo de pessoas que tendem a ficar chocadas quando veem alguém inteligente a ser incapaz de perceber o que outra pessoa infinitamente mais estúpida percebe num piscar de olhos, o tipo de pessoas que não sabe, como explica Roland Barthes em Fragmentos de um Discurso Amoroso, que o lugar mais escuro numa sala fica precisamente debaixo de uma lâmpada.

O drama de todo o romance, ou pelo menos de toda a parte ocidental do romance, parece condensar-se neste lamento feito por Liat em relação ao seu marido:

Algo nela lhe podia dizer que não podia ser. Que Eytan não fazia coisas daquelas. Tinha-o escolhido porque ele era estável, orgulhoso, seu. E tinha-o testado desde o princípio, testara-o muito bem, e só quando teve a certeza de que ele estava perdidamente apaixonado e louco por ela, só então se concedeu a si própria a autorização excecional de se ligar a ela.”

O espanto aqui relatado é o que acompanha o casal de protagonistas burgueses quando percebem que a vida, afinal, teima em não caminhar pela estrada que durante tanto tempo construíram para ela. Mas se o romance é sobre a compreensão de que os nossos melhores esforços são incapazes de domesticar a vida, é também sobre a tentativa de compreender exatamente em que momento Eytan (nesse aspeto, muito parecido com todos nós) deixara de ser o rapazito que chorara da primeira vez que vira um sem-abrigo para se tornar no tipo de pessoa que vê um eritreu morto no chão e age como se isso nada tivesse que ver consigo.