Título: Um coração convertido
Autor: Stefan Hertmans
Editora: D. Quixote
Páginas: 320
Preço: 17,70€

Um coração convertido é o segundo livro de Stefan Hertmans publicado em Portugal, depois de Guerra e Terebintina. Os dois têm a marca da D. Quixote. Um e outro mostram Stefan Hertmans como autor de mestria inegável e capaz de ir beber aos documentos históricos para criar a história da literatura. Guerra e Teribintina foi nomeado para o Man Booker International Prize em 2017, vendeu cerca de 250 mil exemplares e foi traduzido para 34 línguas. Já este Um coração convertido recebeu o prémio E. du Perron.

Aqui, Hertmans conta a história de Vigdis (Rouen, 1070), jovem de uma nobre família cristã que, no século XI, se apaixona, aos 17 anos, por David Todros, judeu de uma escola rabínica. O amor correspondido leva à fuga e à conversão dela, que muda de nome para Hamoutal e passa a ser judia, embora nunca se sinta na sua pele ante os novos rituais e orações.

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Os dois acabam por casar e ter filhos e fogem de terra em terra, empunhando cartas de recomendação de rabinos, já que o pai de Vigdis, descendente dos vikings e homem poderosíssimo, se enfurece e oferece uma recompensa a quem lhe devolver a filha, enviando os seus cavaleiros para que a procurem. A época é a dos cruzados a atravessar a França rumo ao norte de África. A Primeira Cruzada saqueia a vila onde David e Hamoutal estavam, queimando a sinagoga. David morre num massacre de judeus e Hamoutal também perde o rasto dos filhos. Viaja então a sós para o Egipto, no que parece uma epopeia a roçar o impossível, muito para lá do improvável.

À medida que narra a história, Hertmans conta também a sua busca pelos documentos que a sustentam, já que a ideia para a obra partiu de ter descoberto que Monieux, a aldeia da Provença onde passava temporadas no Verão, foi palco de um massacre de judeus há cerca de mil anos. Imbuído da vontade de chegar às entranhas da história, fez pesquisa e um monumental romance. Em 1969, um vizinho mostrou-lhe um artigo em que se detalhavam os factos conhecidos sobre a vida de um convertido. Numa manhã, após tê-lo lido, Hertmans viu dois viajantes subirem a montanha, um homem e uma mulher grávida que caminhava com dificuldades. Imaginou-os enquanto refugiados do século XI em busca de abrigo com o rabino local e daqui partiu a ideia para o romance.

Só neste ápice, parece condensar-se um milénio de história, e parece fácil recuperar-se o que calcou aquela terra, já que o olhar contemporâneo se mostra como tendo alcance no passado. Para mais, o estilo de Hertmans simplifica a tarefa de olhar para um lugar e ver séculos de história, criando um fio condutor que dá ao leitor uma visão panorâmica de um lugar, com a sua geopolítica, os seus saques, os seus massacres, as suas histórias de amor, os medos e as angústias que fazem da gente mais do que peões de uma engrenagem que simplesmente os arrasta e faz anónimos.

Ao delinear o romance, o autor alterna entre a busca de Hamoutal pela vida e a sua busca pela vida dela. Ao apresentar história e romance, não se sente o desfasamento expectável porque ele é assumido a priori. Com isso, não é preciso suspender-se a crença no real, porque o leitor é constantemente relembrado da ausência de omnisciência.

As intrusões do narrador na história não chegam a ser vistas como coisa a mais, porque parecem pertinentes para o delinear da narrativa, para o questionar das opções ou das frustrações de Hamoutal. Vai contando e tendo dúvidas, procurando provas que calibrem o material que tem, mas hesita e questiona-se, perde-se no tempo, não entende motivações, tenta meter-se na cabeça de Hamoutal e David e não consegue. A sua luta por entender torna-se também a nossa.

Enquanto narra a batalha do casal em fuga, narra a sua batalha em busca. Por vezes, tudo parece próximo. Outras, o que parece sólido tem potencial para se dissolver no ar. Enquanto procura a história cimentada, dá-nos a história da vida volátil em que o presente é perigo e a salvação está mais além, seja pela vida de um judeu que procura segurança e aceitação, seja pela de uma mulher que se converte a uma religião que não é dela por amor e que, ao perder as raízes que haviam estruturado a sua vida, procura enfim um lugar a que possa chamar casa (ela, que beijou a parede quando pareceu ter chegado aí), ao mesmo tempo que as estruturas da cultura em que cresceu.

Aqui, Hertmans é mestre Hertmans. Não comete o erro de se pôr de fora a colar as características psicológicos das personagens, garantindo a falha. Pelo contrário, imagina onde lhe convém e então especula sobre o que poderão pensar, o que faz com que o leitor se possa outrar em duas cabeças em simultâneo. Isto, convém dizer, não faz das personagens entes robóticos, vazios de sentido. Nota-se, ao invés disso, o respeito pelo distanciamento histórico e a seriedade de quem levou a pesquisa até onde pôde, sabendo que há limites instransponíveis e que, como disse Julian Barnes em O homem do casaco vermelho, uma biografia “é uma coleção de buracos atados com um fio”.