O novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça desafiou esta segunda-feira o poder político a agir contra “o dano irreparável na imagem da Justiça” infligido pela lentidão dos “processos criminais de grande envergadura”.

Minutos depois de ter tomado posse como sucessor de Joaquim Piçarra, o conselheiro Henrique Araújo não fugiu ao tema difícil da descrença dos cidadãos na eficácia do sistema judicial e, perante os habituais elogios ao tempo de decisão dos tribunais de criminalidade comum, criticou a  “inércia do legislador” que abre “espaço à desregulação e à impunidade” e desfiou o “poder legislativo” a assumir, “sem hesitações, as suas competências”.

Elogio à Justiça portuguesa sem fugir ao ‘elefante na sala’: os grandes processos

Tal como os seus antecessores, Henrique Araújo não deixou de elogiar os tempos da Justiça comum quando comparada com as sua congéneres europeias. “Segundo o último Relatório da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça, os tempos de decisão e os níveis de eficiência dos tribunais comuns portugueses situam-se na média dos países europeus, superando até, quanto aos níveis de eficiência, os tribunais de países como a Alemanha, França, Suécia ou Dinamarca”, afirmou.

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Contudo, o novo líder do poder judicial não deixou de questionar: “se a Justiça portuguesa está bem posicionada nesses estudos internacionais (…) o que estará por detrás deste descontentamento generalizado, facilmente percecionável por quem está minimamente atento à realidade?”, afirmou.

Num tom sereno mas assertivo, Henrique Araújo respondeu à sua pergunta retórica: “o sentimento de descrença no aparelho de Justiça resulta da expetativa frustrada dos cidadãos na resolução rápida de processos criminais de grande envergadura em que, geralmente, são visadas figuras da sociedade com notoriedade pública.”

Daí que, tendo em conta que a “realidade está sempre uns bons passos à frente da lei”, o novo presidente do Supremo critique a “inércia do legislador, quando prolongada, aumenta a distância entre a lei e a realidade, abrindo espaço à desregulação e à impunidade”, por ser esse um dos aspetos “que potencia o descontentamento e o desânimo da comunidade, designadamente em relação a condutas que o sentimento geral reprova.”

Por isso mesmo, e face à “reiterada impossibilidade de se alcançarem soluções consensuais na área da Justiça”, Araújo entende que se “impõe que o poder legislativo assuma, sem hesitações, as suas competências, cobrindo normativamente os espaços deixados em aberto pelas velozes dinâmicas da sociedade.”

Crítica ao “generoso catálogo” propiciado pelo Código Penal e Cívil

Para explicar a morosidade do sistema judicial, Henrique Araújo constatou igualmente que os tribunais da Relação têm vindo a ser “transformados em tribunais onde se repetem, de forma ampla, os julgamentos da matéria de facto, desvirtuando-se o caráter residual dessa competência inicialmente atribuída”. O mesmo acontecendo com o Tribunal Constitucional.

E descreveu como, “depois da decisão final, as partes podem arguir nulidades, pedir a retificação ou reforma, reclamar e, eventualmente, recorrer, sendo que todas estas possibilidades de reação à decisão se abrem em cada uma das instâncias de recurso por onde o processo transite. Por fim, e agora quase sempre, o recurso para o Tribunal Constitucional”, disse.

Num discurso em que começou por falar da crise pandémica e dos desafios que a mesma colocou à humanidade e à administração da Justiça, Henrique Araújo centrou a sua atenção na necessidade da Justiça ser transparente e compreendida pelos cidadãos — o que nem sempre é possível devido a “despachos ou sentenças cuja leitura se transforma num difícil exercício” mas também a “toda uma via incidental que pode ser explorada pelas partes, dentro do generoso catálogo propiciado pelos códigos de processo civil e penal.”

Contra a domesticação do poder judicial e o elogio a Piçarra e à sua “lúcida liderança”

O igualmente novo presidente do Conselho Superior da Magistratura — órgão de gestão e disciplinar da magistratura judicial a que presidirá por inerência de funções — manifestou ainda contra qualquer espécie de tentativa de controlo do poder judicial por parte do poder político. “Os sistemas de poder nas sociedades modernas têm produzido formas sofisticadas de condicionamento ou ‘domesticação’ do poder judicial. São facilmente intuíveis as razões que subjazem a essa intromissão e, por isso, a independência do poder judicial tem de estar na linha da frente da defesa do Estado de Direito”, afirmou.

“No dia em que for atacada a independência do poder judicial, o Estado de Direito claudicará e com ele os direitos fundamentais dos cidadãos e a própria democracia”, concluiu.

Henrique Araújo não deixou de fazer um elogio ao seu antecessor, Joaquim Piçarra — conselheiro que “enquanto Presidente do Conselho Superior da Magistratura, teve de enfrentar uma série de acontecimentos, no judiciário, que todos gostaríamos que nunca tivessem ocorrido.” Uma alusão à Operação Lex.

Elogiando a sua “lúcida liderança”, Henrique Araújo afirmou que Piçarra “reinventou modos de gestão, reorganizou os serviços, esteve permanentemente atento às diárias oscilações do surto pandémico, num esforço contínuo de adaptação do tribunal às circunstâncias do momento. Tudo com a pressão da urgência e sem um precedente que pudesse guiar a forma de atuar perante uma calamidade deste tipo”.