As mulheres assumem papéis ativos entre os grupos de insurgentes que protagonizam ataques no norte de Moçambique, incluindo ações de combate, refere um estudo esta segunda-feira consultado pela Lusa.

O estudo, intitulado “O Papel das Mulheres no conflito em Cabo Delgado: Entendendo Ciclos Viciosos da Violência”, é da autoria de João Feijó, pesquisador do Observatório do Meio Rural (OMR), organização da sociedade civil moçambicana.

As mulheres não deixam de fazer uma análise das vantagens, em termos materiais e de segurança, que podem retirar da colaboração com as diferentes forças em confronto, em função de cada contexto, assumindo-se, por vezes, como agentes ativos no conflito”, refere a pesquisa.

Apesar de serem vulneráveis e estarem sujeitas a um intenso sofrimento, as mulheres estão longe de constituir meros sujeitos passivos durante os conflitos armados, destaca o trabalho.

O estudo apurou que os grupos rebeldes que atuam na província de Cabo Delgado contam com mulheres em tarefas de recrutamento, observação (espionagem) e ações armadas. Tal como noutros conflitos, as mulheres tem uma participação minoritária em ações de combate na guerra no norte de Moçambique. A pesquisa aponta a intimidação e coação como métodos de recrutamento de mulheres que acabam se filiando aos grupos armados.

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“Pela desconfiança [por parte das forças governamentais] de colaboração com grupos rebeldes e, portanto, alvos de rusgas mais violentas [havendo relatos de roubos, agressões e violações], as mulheres oriundas de grupos etnolinguísticos da costa da província de Cabo Delgado apresentaram-se ainda mais vulneráveis”, lê-se no estudo. As comunidades da costa de Cabo Delgado são maioritariamente muçulmanas e tiveram historicamente uma relação distante e, às vezes, hostil com as autoridades, acusadas de proteger e favorecer a etnia maconde do interior da província.

A pesquisa assinala que a violência contra as mulheres constitui uma prática corrente em conflitos armados e Cabo Delgado não é exceção. “Os relatos revelam que as mulheres foram vítimas de raptos e violações e também sujeitas a agressões“, diz o estudo.

Privação de atividade económica, roubos e destruição de património são também outras formas de violência infligida àquele grupo populacional na guerra em Cabo Delgado.

“A limitação do acesso à saúde, por destruição de instalações sanitárias e o abandono de pessoal médico, agravou, ainda mais, a assistência de populações deslocadas com ferimentos, mas também a prestação de cuidados materno-infantis, tratamento de cólera, diarreias e malária com consequências frequentemente fatais”, diz o estudo.

Em entrevista que concedeu à Lusa em abril, João Feijó referiu que relatos de 23 mulheres raptadas que escaparam das bases de rebeldes no norte de Moçambique revelam um grupo organizado que recruta crianças soldado e dá indícios de traficar raparigas para o estrangeiro, segundo um novo estudo. “O que nos leva a levantar essa hipótese é a quantidade de mulheres que foram raptadas“, sobretudo em 2020, refere João Feijó.

Há relatos de “centenas de mulheres” raptadas durante o ataque de há mais de um ano a Mocímboa da Praia, “a mesma coisa em agosto” quando a vila foi tomada e da mesma forma noutros ataque, lê-se no trabalho “Caracterização e organização social dos machababos [insurgentes] a partir dos discursos de mulheres raptadas”.

“Se formos somar [todas as ocorrências], atingimos largas centenas de mulheres, o que levantaria um problema logístico de alimentação e exposição do próprio grupo em termos militares”, sustenta.

Por outro lado, “há o testemunho das meninas mais bonitas que ao fim de uma sessão de doutrinação vêm dizer às colegas que foram selecionadas para ir estudar para a Tanzânia”. O investigador e a equipa do OMR acreditam que o seu destino são redes de tráfico de mulheres que se estendem até à Europa e Golfo Pérsico, pelo que o estudo sugere, entre outras medidas, um reforço do controlo de fronteiras.

As mulheres raptadas que estiveram nas bases de insurgentes viram ainda “crianças e adolescentes a fazer treinos militares e lutas com catanas”, bem como “jovens há dois e três anos” no grupo, “ansiosos pela sua primeira missão”.

Grupos armados aterrorizam a província nortenha desde 2017, com alguns ataques reclamados pelo grupo jihadista Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.800 mortes segundo o projeto de registo de conflitos ACLED e 714.000 deslocados de acordo com o governo moçambicano.

O número de deslocados aumentou com o ataque contra a vila de Palma em 24 de março, uma incursão que provocou dezenas de mortos e feridos, sem balanço oficial anunciado. A fuga de Palma continua e já provocou perto de 68.000 deslocados. As autoridades moçambicanas anunciaram controlar a vila, mas os tiroteios têm se sucedido e a situação levou a petrolífera Total a abandonar por tempo indeterminado o recinto do empreendimento que tinha início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expectativas de crescimento económico na próxima década.