Não será fácil relembrar o Monte Cara uns 30 ou 40 anos depois do seu apogeu. A constatação é de Leonel Almeida, de 69 anos, o primeiro vocalista da banda residente do mítico clube lisboeta e que agora assume novamente o microfone neste reencontro especial, “com a idade as pessoas vão-se esquecendo de algumas coisas” — o concerto do B.Leza, no passado dia 27 de maio, foi um primeiro cheirinho dessa reunião. Mas foi só desembaraçar o novelo da memória para que as histórias começassem a rolar ao telefone, com ligeireza de coladeira, e sempre com Bana a marcar o ritmo do enredo: “as partes mais importantes que ele nos ensinou nós nunca vamos esquecer”.

As Nações Unidas da música

Foi o cantor cabo-verdiano, chegado a Portugal depois de ter passado pelo Senegal, Holanda e França, que erigiu em 1976 na Rua do Sol ao Rato o seu Monte Cara, em homenagem ao monte homónimo da ilha de São Vicente, uma das sete maravilhas de Cabo Verde. O espaço, com restaurante no piso de cima e sala de baile na cave, funcionava como um laboratório musical. Tito Paris chamava-lhe “as Nações Unidas da música”, ressalvando que o Monte Cara foi o grande responsável pelo desenvolvimento da música africana em Portugal.

De facto, antes do Monte Cara não havia nenhum espaço no país exclusivamente dedicado aos sons de África. Na altura “Lisboa era curta”, lembra Leonel, que vive na capital há 46 anos e que nos recorda que havia um certo preconceito e receio das pessoas em frequentarem ambientes africanos. Isso explica o porquê de, nos primeiros anos de funcionamento do Monte Cara, quase a totalidade da clientela ser de origem africana, especialmente cabo-verdiana.

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A primeira banda do Monte Cara

O ponto de viragem dá-se nos anos 80 quando o Presidente da República Ramalho Eanes vai ao clube de Bana, para uma festa organizada por Joaquim Letria, então porta-voz do presidente. “Onde ia o presidente, iam os jornalistas”, recorda Ademiro Nascimento, filho de Bana e um dos antigos gerentes do clube. “Depois desse acontecimento, os portugueses começaram a ir ao Monte Cara sem medo. Viram que afinal era um ambiente tranquilo e de partilha”. Foi ali que começaram a dançar coladeira, funaná, “e nós com o sorriso no rosto de quem sabe e vê os outros tentar”.

Uma morna para começar a noite e uma canjinha antes de ir dormir

De Ramalho Eanes a Nuno Krus Abecasis, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa que chamou Bana ao seu gabinete para lhe dizer que o Monte Cara era uma entidade de interesse público; de Rui Veloso, “que ia lá quase todas as noites” puxado pelo amigo Dany Silva, a Caetano Veloso que, tal como muitos músicos que atuavam no Coliseu, escolheu o Monte Cara para findar a sua noite, toda a gente acabava por desaguar naquela “cave”. “Esse pessoal todo da música, da literatura, do teatro ia lá tranquilamente beber o seu copo antes de ir para casa”, conta Ademiro: “Muitos restaurantes pagariam aos artistas para fazerem presenças, mas nós tínhamos a particularidade de não os importunar. Eles quase que passavam despercebidos.”

Às personalidades ilustres – e a lista adensa-se com nomes como Mário Soares, o Major Vítor Alves, ex-membro do Conselho de Revolução, o atual Presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, Assis Pacheco, os Heróis do Mar ou os Trovante – juntavam-se emigrantes cabo-verdianos vindos de toda a Europa, obrigados a fazer escala em Lisboa antes de regressarem à sua terra natal: “Pousavam a mala no bengaleiro e ficavam lá a fazer tempo até ao voo das 7 ou 8 da manhã”.

Nações unidas na música e na diversidade do público, vários nomes passaram pelo clube. Foi no Monte Cara, já o clube tinha outro nome, que o Bloco de Esquerda fez o seu jantar inaugural. Foi também lá que Mariza assinou o seu primeiro contrato com a editora holandesa World Connection

Nesse aspeto, o clube funcionava como ponto de encontro de várias sensibilidades, credos, origens e bolsos. Ali eram recebidos de braços abertos os senhores doutores e os “senhores pedreiros”, sem qualquer distinção. Ninguém ia embora sem “tomar uma canjinha” ou comer uma cachupa no restaurante e mesmo de estômago cheio, às vezes só com muito esforço é que Ademiro, Bana e companhia convenciam o pessoal a debandar do Monte Cara. “Tínhamos que usar da nossa psicologia”, ri-se.

“Deixa estar o pessoal à vontade”

O que cativava gente tão distinta a frequentar aquele lugar especial era, nas palavras de Ademiro, o ambiente familiar e boémio e a hospitalidade de Bana: “Certo que era um negócio, mas nunca pensámos naquilo como negócio puro e duro. O meu pai nem era muito de contas, ele gostava de receber bem”, diz o mais velho de oito filhos, agora com 65 anos, trazendo à conversa as efusivas passagens de ano que duravam dois ou três dias. As mesas, sempre fartas, estavam carregadas de carne, marisco e peixe vindos diretamente de Cabo Verde. “O meu pai fazia ementas de 1.000, 1.500 escudos e eu dizia-lhe, fogo pai, assim não dá! Aí ele respondia, deixa estar o pessoal à vontade. Se as pessoas estivessem contentes, ele também estava”.

Já na música, Bana era bastante exigente. Não era qualquer músico que tocava no Monte Cara, palco por onde passaram nomes desconhecidos que se viriam a tornar grandes, como Celina Pereira ou Cesária Évora. “A Cesária de vez em quando tinha o seu set. Estava sentada no restaurante, descia tranquilamente descalça com o seu copinho de Martini – tinha sempre que ter um copinho, porque ela era muito tímida – e cantava”.

Nos primeiros tempos, o clube funcionava apenas com música ao vivo. Os intervalos das atuações eram chamados de “whisky time”, momentos para pôr a conversa em dia e beber mais um copo. Só em 1978 é que o Monte Cara teve o seu primeiro DJ: Jacqueline Fortes tinha assumido a cabine. Na imagem, a banda composta por Jose Afonso, Tito Paris, Nataniel, Toy Paris, Quim D Beta, e Manuel Paris.

Foi inclusivamente no Monte Cara que o produtor Djô Silva começou a desenhar o projeto da Cesária Évora, desvela Ademiro: “O Djô Silva inspirou-se numa sessão que nós fazíamos aos domingos ao jantar: era o Paulino Vieira no piano (interprete fundamental na carreira de Cesária), o Toy Vieira no cavaquinho, o Armando Tito, o melhor guitarrista de Cabo Verde, na guitarra, e o Bana a cantar. Era arrepiante! Mas o meu pai era bicho do mato, não aceitava entrevistas e nunca se deu conta do valor que tinha como artista. Gostava simplesmente de cantar”. Por isso, remata Ademiro com uma ligeira matreirice na voz, o Djô da Silva levou a banda, “porque ele queria o pacote completo”, e assim lançou as bases de Cesária Évora.

De Lisboa para a diáspora

Questiúnculas à parte, Ademiro não põe em causa o enorme talento de Cesária Évora: “Era uma grande interprete”, como também o era Bana, “ele nunca desafinava”. Em 1992 foi agraciado com o grau de Oficial da Ordem do Mérito de Portugal e em 2012 eternizado como o “Rei da Morna”, aquando da distinção com o Prémio Carreira pelo Cabo Verde Music Awards.

O legado de Bana é vasto, com mais de meia centena de discos gravados a solo ou com o conjunto “Voz de Cabo Verde”, do qual foi cofundador em 1966, ao lado de referências como Luís Morais e Morgadinho. A partir do momento em que Bana se estabelece em Lisboa, o Monte Cara passou a ser o quartel general da banda: “À noite fazíamos os nossos espetáculos no Monte Cara e de dia íamos gravar discos”, recorda Leonel Almeida.

Na imagem, Bana. Além de um clube, o Monte Cara era também uma editora que gravou nomes como Bulimundo, Leonel Almeida, Jacqueline Fortes, Paulino Vieira, Luís Morais, Dany Mariano, José Casimiro ou Celina Pereira

As digressões ocupavam o restante tempo do grupo, “era maravilhoso! Havia concertos que eram preparados um mês antes da nossa chegada, pareciam uma gala!”. Luxemburgo, França, Holanda, Bélgica eram destinos recorrentes do grupo, “fizemos mais de 40 viagens” e muitas delas de carro, “porque naquele tempo viajar de avião era complicado”.

“Era cansativo, mas eramos felizes”, diz desta feita Tito Paris, o mais arisco do grupo que não se ensaiava para pregar partidas com pasta de dentes aos seus colegas. Tito fez parte da banda do Monte Cara entre 1982 e 1984, fruto de uma casualidade que o tirou de Cabo Verde para o juntar à turma de Bana em Lisboa.

“O Tito veio ao engano. Quem era para vir era o irmão, para tocar bateria”, conta Ademiro, “mas como o Luís Morais, que era quem fazia os arranjos do grupo, gostava do Tito, arranjou-lhe os documentos e mandou-o a ele”. “É verdade, é verdade”, anui desta feita Tito, com voz radiante ao telefone, “há males que vêm por bem”.

Ele tocava baixo, de bateria pouco ou nada percebia, “agora não sei o que é que vou fazer!”, encena repescando o espanto dos seus 19 anos de então. Paulino Vieira foi-lhe passando alguns ensinamentos até ao dia em que, numa digressão na Holanda, o baixista do grupo saiu e abriu uma vaga muito desejada: “Foi a minha sorte, tinha que ser eu a tocar baixo”.

Re: Imaginar Banda Monte Cara – A semente da cultura africana em Portugal

Nesta reencarnação da banda do Monte Cara – com Leonel Almeida na voz, Zé António na guitarra, Toy Paris na bateria, Manuel Paris no baixo e participação especial de Toy Vieira nos teclados – Tito assume o papel de produtor. “Vamos gravar músicas antigas, mas com uma nova roupagem.”

O reportório do EP de sete temas será escolhido por Alcides Nascimento, filho de Bana, voz encantadora de mornas que viu a sua carreira terminar precocemente (apenas com um disco na rua) por causa de uma neurofibratose que o fez perder totalmente a audição. “Mesmo não ouvindo, ele tem feeling e sensibilidade”, diz o irmão Ademiro que acredita que “há espaço e oportunidade” para um projeto como o “Re: Imaginar”: “Há muitas músicas bonitas que as pessoas não conhecem, porque nunca mais foram tocadas. Para esse pessoal, o que vamos apresentar é música nova, música importante do nosso folclore.”

A campanha de crowdfunding pretende angariar 4.432€ até às 18h do dia 17 de junho. À data do nosso artigo, apenas 10% do objetivo tinha sido atingido.

Portanto, o reencontro (amparado por uma campanha de crowdfunding) mais do que um pretexto para matar saudades dos velhos tempos, é uma oportunidade para mostrar às novas gerações a “humanidade” e a “aprendizagem fantástica” que se vivia naquele tempo do Monte Cara e que sensibilizou nomes da nova vaga como Dino D’Santiago. “O legado de pessoas como as que nasceram do projeto do Monte Cara é o legado que me faz hoje viver da música”, diz o músico de 39 anos que, coincidentemente, à hora a que ligámos a Leonel Almeida estava a seu lado, a “expandir a mente” com as histórias do antigamente. “Se eles, que nos deram teto a todos nós e quiseram que Lisboa nos recebesse como nos recebe hoje, estão a fazer o crowdfunding, o que será de nós daqui a 30, 40 ou 50 anos? Temos que olhar pelos nossos grandes mentores e ícones”.

Esta campanha é o primeiro passo de uma série que pretende documentar e reviver a memória do Monte Cara. Um documentário poderá ser um dos próximos projetos, confidencia Ademiro. “Uma vez falei com um produtor de cinema que disse que isso dava um filme.” Já tinham título e tudo: “A Cave que mudou Lisboa”. Agora é só começar a rodar.