A empresa de que Nuno Araújo foi sócio-gerente até entrar no Governo faturou 248.134 euros em ajustes diretos no período em que ocupou o cargo de chefe de gabinete na secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares, então liderada por Pedro Nuno Santos, entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2018. O próprio já veio garantir, no entanto, que o processo resulta de “denúncias anónimas” e “falsas”.

Nuno Araújo abandonou o cargo de sócio-gerente da empresa EQS – Serviços de Emergência e Qualidade antes de entrar no Governo, mas manteve uma ligação ao universo da empresa: é o piloto da ENI/EQS Racing Team. O nome de Araújo continua a surgir na página oficial da empresa em publicações sobre Rallycross, onde a EQS patrocina a sua equipa.

A empresa, a EQS – Serviços de Emergência e Qualidade, acabou por tornar-se uma peça importante de uma investigação conduzida pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal por suspeitas dos “crimes de tráfico de influências e/ou corrupção” em contratos públicos realizados com vários municípios do país.

Analisando o portal da contratação Pública — Base.Gov — é possível verificar que entre 2009 e 2020, a EQS realizou 34 contratos com entidades públicas, totalizando no valor total de 850.232,41 euros. Mas uma parte considerável deste bolo — cerca de 250 mil euros — foi conseguido em apenas um ano e meio, o período dos ajustes que coincidiram com o tempo em que Nuno Araújo esteve no Governo e que está agora a ser analisado pelo departamento do Ministério Público que investiga a criminalidade económico-financeira mais complexa, coadjuvado pela Polícia Judiciária.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O Observador tentou ao final da tarde desta terça-feira obter um esclarecimento junto da empresa, mas não recebeu qualquer resposta até à hora de publicação deste artigo.

No comunicado divulgado, o Ministério Público é claro. Nuno Araújo “usaria a sua influência decorrente do cargo [de chefe de gabinete] para conseguir a celebração por ajuste direto, tirando benefícios monetários através de outra sociedade comercial, que igualmente controlava”.

Para o Ministério Público, Nuno Araújo a saída de sócio-gerente da EQS poderá ter sido fictícia, apesar de estar no gabinete do então secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos. “À data, a sociedade adjudicatária seria gerida e controlada de facto pelo sócio-gerente anterior, o qual exercia então funções de chefe de gabinete ministerial”, pode ler-se no mesmo comunicado.

Especializada na área da Engenharia e Tecnologia, assim como em soluções para apoiar as empresas na gestão dos seus ativos e operações, na garantia da qualidade e da conformidade, melhoria da fiabilidade e desempenho, a EQS acabou por conseguir contratos com o setor público com uma expressão considerável no período em que Nuno Araújo desempenhou funções de chefe de gabinete de Pedro Nuno.

Em resposta ao Observador, já depois da publicação deste artigo, a EQS confirmou as buscas da PJ, garante ter prestado “toda a colaboração solicitada esperando ter contribuído para o esclarecimento do que classifica como um equívoco”, assegura que “Nuno Araújo não exerce qualquer função na EQS desde 2015, data em que renunciou à gerência e cedeu a sua participação social” e insiste que “cumpriu todos os pressupostos legais de contratação pública na celebração dos contratos em causa”.

A cronologia

Nuno Araújo deixou o cargo de sócio-gerente da EQS – Serviços de Emergência e Qualidade em novembro de 2015, precisamente para ocupar o cargo de chefe de gabinete de Pedro Nuno Santos. À frente da empresa ficaram dois sócios, Domingos André da Costa Teixeira e Hélder Filipe Madureira Araújo. Mais tarde, a partir de dezembro de 2019, Domingos André da Costa Teixeira renuncia à gerência.

Em 2018, Nuno Araújo acabaria por deixar a secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares para ser vogal na direção da Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo (APDL). Em 2020, tornou-se mesmo presidente do conselho de administração da Porto de Leixões.

Existem, portanto, dois momentos a considerar: o período em que Nuno Araújo estava, de facto, à frente da empresa (de 2009 até setembro de 2015); e o período em que deixou a empresa para ser chefe de gabinete de Pedro Nuno Santos (2015-2018) até hoje.

Os ajustes diretos do período em investigação

Dos 34 contratos a grande maioria foi por ajuste direto, havendo apenas registo de dois concursos públicos e 4 consultas prévias. No período em que esteve no Governo todos os contratos da empresa com entidades públicas foram conseguidos por ajuste direto.

  • 29 de abril de 2016 — ajuste direto do Município de Coimbra de 56.610 euros (sem IVA)
    Objeto do contrato: Aquisição de serviços de inspeções e realização de inquéritos a acidentes – Ascensores, monta-cargas, escadas mecânicas e tapetes rolantes;
  • 16 de maio de 2016 — ajuste direto do Município de Valongo de 24.390,24 euros (sem IVA)
    Objeto do contrato: Inspeções periódicas, reinspeções e inspeções extraordinárias aos equipamentos elevatórios existentes no Concelho de Valongo. Segundo o portal, apesar do valor contratualizado, o montante final fixou-se nos 27.850,99 euros (sem IVA), com a seguinte justificação: “O preço contratual baseou-se numa previsão de inspeções”;
  • 22 de agosto de 2016 — ajuste direto do Município de Vila Real de Santo António de 24.000 euros (sem IVA)
    Objeto do contrato: Prestação de serviços de inspeção de elevadores, monta-cargas, tapetes rolantes e escadas mecânicas;
  • 25 de outubro de 2016 — ajuste direto do Município de Matosinhos de 8.130 euros (sem IVA)
    Objeto do contrato: Vistoria a elevadores do concelho;
  • 28 de agosto de 2017 — ajuste direto da Águas do Norte, S. A. de 43.500 euros (sem IVA)
    Objeto do contrato: Aquisição de Serviços de Exploração do Subsistema de Vila Chã e Subsistemas de Penices e Água Longa;
  • 15 de outubro de 2017 — ajuste direto do Município de Matosinhos de 8.130 euros (sem IVA)
    Objeto do contrato: Vistoria a elevadores do concelho;
  • 20 de outubro de 2017 — ajuste direto do Município de Gondomar de 74.752,50 euros (sem IVA)
    Objeto do contrato: Aquisição de serviços para a realização de inspeções e reinspeções de ascensores, monta-cargas, escadas mecânicas e tapetes rolantes, bem como para a realização de inquéritos e peritagens;
  • 26 de fevereiro de 2018 — ajuste direto da Universidade do Minho de 8.620 euros (sem IVA)
    Objeto do contrato: Aquisição de serviços de perícia técnica ao Projeto de Estabilidade da empreitada para a Instalação da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, no Convento de São Francisco de Real, em Braga.

Desde que Nuno Araújo foi exonerado por Pedro Nuno Santos, a empresa de que é cofundador já celebrou contratos públicos com as Águas do Douro e Paiva (18.348 euros), a Câmara de Valongo (63.000 euros), a Câmara de Lisboa (19.967 euros), Águas do Centro Litoral (7.940 euros), Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I. P. (7.400 euros em 2019 e 10.030 em 2020), Câmara de Matosinhos (26.887 euros) e com os Serviços Municipalizados de Viseu (4.450 euros).

A defesa de Nuno Araújo: “Denúncias anónimas e falsas”

Entretanto, Nuno Araújo emitiu um comunicado onde explica que “os factos que deram origem às buscas realizadas e que resultaram de uma denúncia anónima feita em 2016 dizem respeito a contratações destinadas à inspeção de elevadores realizadas em 2016/2017 com sete entidades públicas”.

Denúncias que, alega Nuno Araújo, já tinham “circulado pelas redes sociais em 2018” e que, “por serem falsas”, logo nessa altura o próprio intentou “um processo crime por difamação contra o autor das mesmas”.

O antigo chefe de gabinete de Pedro Nuno Santos assegurou ainda que, à data em que assumiu funções no Governo, renunciou, “de imediato, à gerência da EQS CERT, LDA”, acrescentando que “não houve qualquer intervenção” sua nos contratos subsequentes que a empresa realizou.

O piloto da ENI/EQS Racing Team

Apesar de ter saído da EQS, Nuno Araújo continua de algum modo ligado a esta empresa. Basta uma pesquisa no site da empresa para encontrar vários registos. Um deles é o sexto lugar que o piloto Nuno Araújo alcançou no Campeonato de Portugal de Ralicross 2019 na “estreia do Skoda Fabia S1600 do ENI/EQS Racing Team”, descrito como “a grande novidade da primeira passagem […] por Mação”.

“O carro levou Nuno Araújo ao 6.º lugar final, deixando sinais de que será um projeto bem sucedido. Quando em Mação, soou, pela primeira vez, o forte “roncar” do motor instalado no Skoda Fabia S1600 do ENI/EQS Racing Team, ficaram justificadas as longas horas investidas na construção e preparação da nova “arma” da equipa, que promete proporcionar a Nuno Araújo voos mais altos na luta pelos lugares da frente, na mais competitiva categoria do Campeonato de Portugal de Ralicross 2019”, lê-se no site.

Noutra publicação é explicada a relação da empresa com o Trail Running e o Rallycross, que já vem da sua fundação: “Encontra a sua origem no ano de constituição da empresa. Alavancada pela relação pré-existente dos sócios fundadores com o desporto, a promoção de atividades, eventos e equipas desportivas mostra-se como algo natural e decorrente do compromisso assumido pela empresa para com a sociedade civil”. Já esta época, Nuno Araújo estreou um Audi A1 S1600.

Peça-chave na ‘geringonça’

A relação de Nuno Araújo com Pedro Nuno Santos é de amizade e quando este foi chamado para o centro nevrálgico da geringonça, em 2015, não pestanejou sobre quem chamaria para seu chefe de gabinete.

Foi peça-chave na coordenação política do gabinete de Pedro Nuno Santos num período especialmente delicado: os primeiros tempos do Governo de António Costa que estava dependente do apoio da esquerda parlamentar para se manter em funções.

A negociação política de cada Orçamento do Estado, por exemplo, passava toda por ele. Era representante do Governo em muitas das reuniões e estratega político de Pedro Nuno Santos que, no gabinete dos Assuntos Parlamentares, foi montando uma frente de coordenação sempre numa lógica de futuros voos.

Já em 2020, o ministro Pedro Nuno Santos nomeou o antigo chefe de gabinete para presidente da Administração dos Portos do Douro e Leixões e Viana do Castelo (APDL), para o mandato 2020-2022. Líder do PS de Penafiel, já era vogal da administração da APDL desde março de 2018.

Numa nota enviada à comunicação social esta terça-feira, após ter sido tornado público diversas buscas relacionadas com este caso, o gabinete de Pedro Nuno Santos garantiu que “o ministro das Infraestruturas e da Habitação é totalmente alheio à alegada prática dos atos referidos nas notícias” e acrescentou: “Aguardaremos o desenrolar do processo judicial”.

* Artigo atualizado a 9 de junho com declarações de Nuno Araújo e da EQS