O tráfico de droga europeu adaptou-se às restrições de mobilidade impostas pela pandemia, com traficantes e consumidores a recorrem a novos métodos, levando à transição desse mercado para o digital, alerta um relatório esta quarta-feira divulgado. Cerca de 30% dos adultos europeus já consumiu droga pelo menos uma vez na vida e foram detetads mais de 400 novas substâncias psicoativas no mercado europeu. Em Portugal, o consumo e disponibilidade de crack pareceu estar a aumentar durante a Covid-19.

“Uma das principais conclusões é que o mercado de drogas ilícitas tem sido notavelmente resistente às perturbações causadas pela pandemia”, refere o relatório “Drogas 2021: Tendências e Evoluções”, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA, na sigla em inglês).

Segundo o documento, os traficantes de droga conseguiram adaptar-se às restrições de viagens e ao encerramento de fronteiras em vários países europeus, como forma de controlar a disseminação do vírus que causa a doença da Covid-19, e introduziram alterações de rotas e de métodos com uma menor dependência de correios humanos para o tráfico.

Embora o tráfico de rua tenha sido perturbado durante os confinamentos iniciais, os “vendedores e compradores de drogas parecem ter-se adaptado, aumentando o uso de serviços de mensagens criptografadas, de aplicativos de redes sociais e de serviços de correio e entrega em domicílio”, refere o relatório de 2021 da agência da União Europeia com sede em Lisboa.

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“Isso levanta a preocupação que um possível impacto de longo prazo da pandemia será a habilitação digital dos mercados de droga“, alerta o documento, ao avançar que a redução de substâncias ilícitas observada durante os confinamentos iniciais “desapareceu rapidamente” conforme as medidas de restrições sociais e de confinamento foram sendo levantadas.

De acordo com o EMCDDA, em termos gerais na Europa durante os meses iniciais de pandemia, verificou-se um menor interesse dos consumidores por drogas recreativas, como o ecstasy, e uma maior apetência por substâncias ligadas ao consumo doméstico.

No entanto, a flexibilização das restrições de mobilidade e de viagens e o regresso de alguns ajuntamentos sociais durante o verão foram associados a uma recuperação dos níveis de consumo”, adianta o observatório europeu.

Os dados também sugerem que os consumidores ocasionais antes da Covid-19 podem ter reduzido ou até mesmo cessado o uso de droga durante a pandemia, mas os consumidores mais regulares podem ter aumentado seu consumo nesse período.

O relatório indica ainda que o cultivo de canábis e a produção de drogas sintéticas na União Europeia continuaram em níveis pré-pandemia durante 2020, tendo-se observado uma diversificação das rotas de tráfico, com mais canábis e heroína a ser traficada por mar, para evitar o fecho das fronteiras terrestres, o que levou a grandes apreensões em portos da Europa.

Além disso, as autoridades registaram alterações nos locais de partida da cocaína traficada da América Latina para a Europa, mas não se verificou um declínio do abastecimento, apesar das apreensões em território europeu, como as 16 toneladas em Hamburgo, na Alemanha, e as 7,2 toneladas em Antuérpia, na Bélgica.

A tendência para o cultivo doméstico de canábis, parcialmente impulsionada pelas medidas de confinamento, “parece ter continuado em 2020“, refere também o relatório, que alerta para o aumento de casos de canábis adulterada com canabinoides sintéticos.

“Qualquer cenário em que as pessoas consumam canabinoides sintéticos é preocupante, dada a toxicidade de algumas dessas substâncias, conforme ilustrado por um surto de mais de 20 mortes relacionadas ao canabinoide sintético 4F-MDMB-BICA em 2020”, recorda o documento.

De acordo com o observatório, um “desenvolvimento preocupante“, com base nas observações de especialistas em vários países, entre os quais Portugal, é que consumo e disponibilidade de crack pareceu estar a aumentar durante a pandemia.

Relativamente ao consumo de substâncias ilícitas nas prisões, o relatório refere que foi mais reduzido durante a pandemia e ainda permanece mais baixo do que no período antes da Covid-19, o que se pode atribuir à proibição de visitas do exterior aos estabelecimentos prisionais imposta em vários países.

Como conclusão, o EMCDDA sugere que será necessário prestar “muita atenção aos impactos psicológicos e socioeconómicos da pandemia“, bem como às mudanças de longo prazo nos padrões de consumo de drogas ilícitas e comportamentos de risco entre a população em geral.

Além disso, a mudança para um maior uso de plataformas online exigirá inovação nos métodos de monitorização e pesquisa para captar esta dimensão do ‘online’ no tráfico e consumo de droga na Europa, conclui.

Mais de 400 novas substâncias psicoativas detetadas no mercado europeu

Mais de 400 novas substâncias psicoativas foram detetadas no mercado europeu da droga e cerca de 370 laboratórios foram desmantelados em 2019, o que indicia uma estratégia dos traficantes para produzir mais perto dos consumidores. “Em 2019, mais de 370 laboratórios de produção de drogas ilegais foram desmantelados na Europa”, avança o relatório.

Segundo o documento da agência com sede em Lisboa, o aumento do número de instalações detetadas e a produção de uma gama mais ampla de substâncias “refletem a intensificação dos esforços dos criminosos para produzir drogas mais perto dos mercados de consumo, a fim de contornar as medidas antitráfico”. Entre as substâncias detetadas constam canabinoides sintéticos potentes e opioides sintéticos, que representam “ameaças sociais e para a saúde” dos consumidores.

De acordo com o relatório, no final de 2020, o EMCDDA monitorizava cerca de 830 novas substâncias psicoativas, 46 das quais foram notificadas pela primeira vez na Europa nesse ano. “Em 2019, os Estados-membros da União Europeia foram responsáveis por 22.070 das 34.800 apreensões de novas substâncias psicoativas notificadas na União Europeia, na Turquia e na Noruega”, indica o observatório.

O relatório estima ainda que se tenham registado pelo menos 5.141 mortes por overdose na União Europeia em 2019, representando um aumento de 3% em comparação ao ano anterior.

A maioria das mortes diretamente ligadas ao uso de drogas envolve opioides, principalmente heroína em combinação com outras drogas, enquanto estimulantes como a cocaína e as anfetaminas e, mais recentemente, os canabinoides sintéticos, são “agora motivo de preocupação”, indica o documento.

A taxa de mortalidade por overdoses na União Europeia em 2019 está estimada em 14,8 mortes por milhão de habitantes com idades entre 15 e os 64 anos, refere o documento, ao adiantar que mais de três quartos (77%) das mortes por overdose ocorreram entre homens.

Cerca de 30% dos adultos europeus já consumiu drogas ilícitas pelo menos uma vez

Perto de 30% dos adultos da União Europeia já consumiu drogas ilícitas pelo menos uma vez na vida, indica o relatório, que avança que em 2019 foram realizadas cerca de 1,1 milhões de apreensões. “Estima-se que cerca de 83 milhões ou 28,9% dos adultos (com idades entre 15 e 64 anos) na União Europeia (UE) tenham consumido drogas ilícitas pelo menos uma vez na vida”.

17,4 milhões de jovens adultos entre os 15 e os 34 anos usaram drogas no último ano nos Estados-membros da UE, onde o mercado “abrange uma ampla gama de substâncias”.

A canábis é a droga mais consumida, diz o observatório, ao avançar que a heroína e outros opioides “continuam a ser as drogas mais comummente associadas às formas mais prejudiciais de uso, incluindo a injeção”. O consumo de droga é geralmente maior entre os homens (50,6 milhões) do que nas mulheres (32,8 milhões), uma diferença que se acentua para padrões de uso mais intensivos ou regulares dessas substâncias.

O documento estima ainda valores mais baixos para o consumo ao longo da vida de cocaína (9,6 milhões de homens e 4,3 milhões de mulheres), de ecstasy (6,8 milhões de homens e 3,5 milhões de mulheres) e anfetaminas (5,9 milhões de homens e 2,7 milhões de mulheres).

Em 2019, havia cerca de 510 mil pessoas em tratamento de substituição de opiáceos na União Europeia, um tipo de substância que esteve relacionada com 76% das overdoses fatais relatadas nesse ano.

De acordo com o EMCDDA, a Europa é um “importante mercado de drogas”, abastecida tanto pela produção dos próprios Estados-membros, como pelo tráfico de outras regiões do mundo. A América do Sul, a Ásia Ocidental e o Norte da África são áreas de importante fonte de drogas ilícitas que entram na Europa, enquanto a China é um “importante país” de introdução de novas substâncias psicoativas.

Além disso, a Europa também é uma região produtora de canábis para consumo no próprio continente, assim como de drogas sintéticas que são também exportadas para outras partes do mundo. “Cerca de 1,1 milhões de apreensões foram relatadas em 2019 na Europa, com produtos de canábis mais frequentemente apreendidos”, maioritariamente a pequenos consumidores.

O número de apreensões de resina de canábis (-9%) e heroína (-27%) foi menor em 2019 do que em 2009, enquanto as apreensões de cocaína (+27%), anfetaminas (+40%) e canábis herbácea (+72%) aumentaram nesse período de tempo. Em 2019, os Estados-Membros da UE comunicaram 326.000 apreensões de resina de canábis, correspondentes a 465 toneladas, e 313.000 apreensões de canábis herbácea, num total de 148 toneladas.

De acordo com o relatório, a cocaína continua a ser a segunda droga ilícita mais usada na Europa e a sua procura pelo consumidor faz com que seja uma “parte lucrativa do comércio de drogas na Europa” para os traficantes.

“O recorde de 213 toneladas da droga apreendida em 2019 indica uma expansão da oferta na União Europeia”, aponta o documento, ao considerar que a pureza da cocaína tem aumentado na última década e o número de pessoas que iniciam o tratamento pela primeira vez cresceu nos últimos cinco anos.

Por outro lado, a anfetamina, a segunda droga estimulante mais consumida na Europa depois da cocaína, é produzida em locais perto dos mercados consumidores da União Europeia, principalmente nos Países Baixos, Bélgica e Polónia. Em 2019, os Estados-membros da UE comunicaram 34 mil apreensões de anfetaminas, no valor de 17 toneladas (8 toneladas em 2018), com a quantidade apreendida a aumentar nos últimos quatro anos.

A Europa continua também a ser uma importante fonte de produtos MDMA que abastecem o mercado global, com o número de laboratórios destas substâncias desmantelados por autoridades policiais na União Europeia a continuar a aumentar.

Com grandes quantidades de heroína apreendidas na Europa em 2018 e 2019, há uma “preocupação crescente com o impacto que uma oferta crescente pode ter nas taxas de consumo”. Segundo o observatório, grandes remessas foram detetadas em 2019 em portos de países europeus, incluindo Bélgica, Países Baixos e Eslovénia, refletindo uma “diversificação do tráfico de heroína para além das rotas terrestres”.  Os Estados-membros da UE comunicaram 26 mil apreensões de heroína no valor de 7,9 toneladas