No Museu Nacional de Arte Contemporânea — designação longa, eu sei, mas que deve ser sempre utilizada, até para lembrar a quem governa que se trata dum dos nossos principais museus públicos e como tal deve ser protegido e provido —, que atravessou o eclipse pandémico sem cruzar os braços, organizando exposições viabilizadas por mecenato e sobretudo protagonizando um verdadeiro Inquérito aos Artistas Portugueses, dos mais conhecidos aos novíssimos, somando até hoje — e continua — 123 depoimentos em vídeo acessíveis nas redes sociais da instituição, surge agora “Francis Smith: em busca do tempo perdido”, uma exposição que tem por base o notável trabalho do investigador e curador desta exposição Jorge Costa, a publicar nos próximos meses pela editora Tinta da China, e a que tivemos acesso.

Depois de ter contribuído para uma revisitação da obra de Sarah Affonso (1899-1983), reenquadrando-a enfim capazmente na arte portuguesa do século passado, a atenção do MNAC a Francis Smith (1881-1961) vem sublinhar de um modo muito especial — exemplar até, como veremos — a sua consciência de que ainda há muito por fazer pela identificação sistemática do trabalho de pintores que a historiografia subestimou, todo um défice de atenção que inércia e preguiça habituais repercutiram languidamente pelas décadas adiante e até hoje.

No atelier de Emmerico Nunes, no famoso 14 Cité Falguière, em Paris, 1909. Francis Smith é o primeiro de pé, à esquerda. Arquivo Jorge Rebelo

A biografia quase toda francesa do pintor e alguns dos seus motivos ajudaram a engavetar Francis Smith como “o pintor da saudade portuguesa”, ou “cronista da Lisboa ausente”, expressão esta cunhada por Jorge Barradas em 1967. A temática exclusivamente portuguesa da sua exposição em Lisboa em 1934 — uma despedida do país natal, a que não mais voltaria — também contribuiu sobremaneira para tal equívoco, reforçado pela capa do número de Julho de 1962 — clara homenagem ao artista falecido em Paris em Outubro do ano anterior — da Colóquio. Revista de Artes e Letras que reproduz Escadinhas de Lisboa, um dos dois quadros que o Estado comprou ao pintor em 1934 diretamente para o MNAC (e sem necessidade de um pomposo comissário para o efeito…). A chamada receção crítica fez o resto. Urbano Tavares Rodrigues referiu-se-lhe como «a saudade em pintura» num artigo de 1954. José-Augusto França rotulou-o severamente em 1974 como pintor burguês, “espécie de Utrillo lisboeta”. Já em Maio de 1967, a pretexto da muito suposta exposição retrospetiva no SNI, promovida por Paulo Ferreira, Manuel Mendes tinha ido ao ponto de escrever que os trabalhos do pintor “exilado durante bons cinquenta anos” (sic) não haviam conhecido “outro tema senão o da terra natal”, o que é um redondo disparate como desde logo nos esclarecem algumas paredes da velha Sala dos Fornos — por exemplo diante de Vue sur la Campagne, Mardi GrasSaint Germain-des-Près, Vue du Sacré-CœurCena Urbana, Porto (Martigues), também identificado como Saint-Tropez, ou Paysage du Midi, entre outros quadros das décadas de 1920-40 adquiridos pela Fundação Calouste Gulbenkian, ou do sem dúvida monegasco Espectáculo (1928), pertencente ao Millenium bcp, e que em contraponto eloquente ao saudosismo estabelecido foi escolhido — e muito bem — para cartaz-ícone desta exposição, tanto mais que o quadro evoca trabalhos congéneres de Manet, Degas e Renoir. No I Salão de Outono da SNBA, organizado em 1925 por Eduardo Viana, Smith apresentou três paisagens urbanas… de Paris. Lucidamente, o Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian também recusou subscrever o estafado saudosismo dos bairros populares lisboetas, dando ao cartaz da sua exposição de desenhos do pintor, em 1972, o arrojado retrato de sua mulher, Ivonne, apresentado ao Salon des Artistes Français em 1912, onde podem ser vistos traços das máscaras “africanas” de Picasso e outros.

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Paysage du Midi, óleo sobre tela, 1920, 74 x 92 cm. Coleção Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian

Jorge Costa prefere caracterizar Smith como alguém que, tal como Bonnard (1867-1947), parece “excluir-se voluntariamente das lutas e reivindicações artísticas do seu tempo”, optando por uma aproximação à modernidade “mais subtil e subterrânea”, e que, fiel a alguma Escola de Paris dos anos 1920, induziu “lirismo português” em temas modernos da vida contemporânea francesa — razão pela qual foi francamente acolhido pelas mais conceituadas galerias parisienses do seu tempo, com 25 exposições individuais desde 1919 e mais de uma centena de participações em mostras coletivas. Em 1936, Louis Vauxcelles escreveria: “Faz tantos anos que ele mora aqui, que nós temos o direito de o reivindicar”. A medida do lugar do pintor na cena artística francesa ficou dada em definitivo na homenagem pos-mortem realizada em Paris em 1963, uma exposição coletiva justamente intitulada “Francis Smith et Ses Amis”, 67 no total, entre os quais Braque, Chagall, Cocteau, Picasso, Modigliani, Kisling, Van Dongen e Derain, mas nenhum português, nem sequer os que então viviam e trabalhavam na capital francesa. O seu quadro La sortie des bureaux, c. 1959, figurando um engarrafamento automóvel numa rotunda — mas que, infelizmente, não podemos ver na exposição do Chiado —, dir-se-ia premonição duma das cenas finais de Playtime de Jacques Tati, um filme de 1967.

Porto (Martigues), óleo sobre tela, 1929, 37,9 x 42,2 cm. Coleção Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian

Filho e neto de altos oficiais da Marinha Portuguesa, Francis, que cresceu numa velha quinta nos Olivais, recebeu em ensino privado as primeiras bases artísticas, aceleradas pela frequência intermitente, em Paris, de academias privadas e ateliers de 1902 a 1908, meios artísticos independentes em que também circularam Eduardo Viana e Amadeo de Souza-Cardoso, Emmerico Nunes (desde então, seu amigo para sempre) e Domingos Rebêlo, além de outros portugueses, nem todos bolseiros do Estado, longe disso, que em Montmartre partilhavam casas, oficinas e os mais ou menos parcos recursos de cada um. Fotografias de grupo são verdadeiros tratados de cumplicidade e boa estroinice, desdobradas em viagens internacionais de estudo a museus como a que em 1910 juntou Smith a Bentes, Emmerico e Viana. Modigliani fez-lhe um rápido retrato a lápis em 1919 (hoje na posse dum colecionador no Canadá), registo privilegiado de relações pessoais e artísticas facilitadas pelo estreito epicentro da vanguarda internacional em Paris.

Porto de Marselha, guache sobre papel, c. 1959, 20 x 27 cm. Coleção Millenium bcp

Mas foi sem dúvida o casamento do nosso artista com a escultora francesa Yvonne Mortier, em Novembro de 1911, que lhe mudou a vida. O português de ascendência e fleuma britânica juntava-se à filha duma herdeira de abastada família judia de origem holandesa, com tradição literária consolidada e forte influência no jornalismo cultural francês. Dois anos depois, o crítico Louis Vauxcelles dirá de Smith que “este jovem pintor é um intimista dotado”, atributo que Natureza-morta de 1916 (aqui exibida) e Interior de c. 1925 confirmarão sem margem para dúvidas. O cunhado Pierre Mortier — informa Jorge Costa — apresenta-o ao banqueiro Thadée Natanson, célebre protetor de pintores “Nabis” e diretor da Revue Branche, que — como fizera com Pierre Bonnard, com quadro de c. 1909 no Museo Reina Sofia em Madrid desde 2017 — lhe encomenda retratos familiares e logo o recomenda a amigos, tendo o português ganho “reputação de retratista da elite burguesa e intelectual parisiense”.

O Fado, óleo sobre tela, 1928, 59,5 x 72,5 cm. Museu Coleção Berardo

Um desses quadros, o retrato de Arnold Mortier, seu cunhado e jornalista, feito logo em 1917, pode ser visto na exposição. A simpatia da galerista de vanguarda Berthe Weill (1865-1951) chegaria pouco depois e de modo veemente e singular, através duma exposição individual em 1922, que testemunha a permanência do pintor no sul da França durante os quatro anos de guerra. Depois do retumbante êxito duma exibição de trabalhos na antiga Galerie Devambez, no fim de 1919, não podia ser maior o contraste com o absoluto desaire comercial e crítico da exposição no pequeno Salão Bobone, de Lisboa, em Novembro de 1918. Smith voltaria a expor a solo na Galeria Berthe Weill em 1924, 1927, 1928 e 1930, e coletivamente até 1939. Em 1931 exibiu-se em Paris ao lado de Henri Rousseau e Camille Bombois. “No final dos anos 30, — escreve Costa, — a Bénézit, uma das mais conceituadas galerias parisienses do período dedicadas à arte naïf, adquire-lhe um grande conjunto de obras”, e em 1944 concede-lhe uma exposição monográfica.

Espectáculo, óleo sobre tela, 1928, 69,5 x 45,7 cm. Coleção Millenium bcp

É o triunfo do que Jorge Costa chama “encenada e afectiva miniaturização benigna do mundo”, em que se fundem a memória sensível supremamente representada pela literatura de Marcel Proust e a memória afetiva do pintor Eugène Delacroix. “É neste quadro mental de revalorização da sinceridade intuitiva da expressão infantil e de voluntária desaprendizagem cognitiva que devemos enquadrar o carácter ingenuísta da obra de Francis Smith”, é esta a frase-chave do historiador de arte que tenta inverter a tradicional recepção crítica do luso-francês, que como “pintor de memória” foi criando “um imaginário memorialístico pessoal cada vez mais liberto do modelo natural”, uma geografia sentimental de emigrado com «uma ilusão espacial de profundidade e distância». Para o pintor que para epígrafe duma tela de 1954 escreveria “A felicidade está no dar” (Le bonheur, c’est d’en donner), e cuja arte pictórica consistiu, em variadíssimos exemplos, num “apelo licencioso ao ócio e ao descanso” (Costa dixit), a joie de vivre parisiense, a paradisíaca Côte d’Azur e desportos ou refeições ao ar livre não podem ter deixado de ser boa quota-parte em tudo isso. No quadro de c. 1925 Place de Tertre, Francis pintou o pai numa alegre esplanada de Montmartre repleta de gente… No guache Varinas, c. 1955, que podemos ver no MNAC, as tão celebradas por muitos vendedoras de peixes das ruas e vielas de Lisboa surgem no cenário escarpado do que parece ser pequena cidade medieval do sul da França, que Smith conheceu bem. Em Tocador de Guitarra em Val, uma aldeia provençal onde o pintor arrendou casa de férias, é afinal o seu amigo e pintor de Serpa Manuel Bentes (1885-1961) o representado; a exposição apenas pôde mostrar o desenho a carvão feito em 1909 que haveria de inspirar este quadro vinte anos depois.

Mardi Gras, óleo sobre tela, 1942, 65 x 81 cm. Coleção Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian

Nesse basculante retorno ao passado, que ultrapassa largamente o círculo lisboeta, Jorge Costa relaciona diversas cenas em portos e cais de embarque — “obsessão iconográfica pela náutica” — com a tradição familiar de Francis Smith que no início da vida adulta foi, por curto período, funcionário administrativo do Ministério da Marinha. A atenta coleção Millenium bcp também nos proporciona Porto de Marselha, um dos últimos trabalhos do pintor, um guache datado c. 1959 que representa o animado cortejo de desembarque de passageiros dum navio festivamente decorado. Romarias e procissões de província, touradas de boa tradição mediterrânica, conversa entre mulheres na soleira duma porta (v. o magnífico quadro de c. 1930 da coleção Gulbenkian) ou até um baile popular sob latada, aproximam Portugal e França numa iconografia de convivialidades dialogantes, onde é muito comum figuras surgirem aos pares.

Cena interior, óleo sobre tela, c. 1918-20, 55 x 46 cm. Coleção privada

Ora, tamanho elogio da vida sob um sol auspicioso, atento à graciosidade pitoresca de ladeiras de aldeia, de praças urbanas ou de província, de vistas de baías luminosas, ou de bairros populares de prédios acoplados como em presépios barrocos, se não podia satisfazer críticos e historiadores de arte virados a abstracionismos de moda em que o mais humano ficou suspenso, devolve-nos todavia um mundo antigo e seguro, tanto quanto um novo apaziguado, depois de duas guerras fraticidas e em que o quotidiano prevalece sempre: Fado, um admirável quadro da Coleção Berardo (1928, 59 x 72,5 cm), e Le Tennis, uma partida de torneio de pares pintada aos 76 anos, em 1957, mas apenas reproduzido no livro de Jorge Costa que se espera chegue quanto antes ao Museu, como apoio essencial desta exposição e da reavaliação da obra de Francis Smith que ela realiza e pretende inspirar. É que não estamos apenas diante de “uma obra vasta dispersa internacionalmente por coleções privadas de todo o mundo” e um “espólio familiar disseminado entre diferentes herdeiros e colecionadores privados”. Um correlato trabalho comparativo entre Smith e outros artistas do seu tempo precisa ainda de ser feito, até mesmo (e desde logo, e é o mais fácil) para o restrito contexto da representação dos bairros populares de Lisboa. São também esses alarme e repto que um museu nacional bem dirigido como este pode e deve lançar. O caminho faz-se caminhando, “é dos livros” — mas cuidado com os alçapões e as armadilhas inesperadas…