Lisboawood. O nome é-nos familiar. Os acontecimentos que nela ocorrem também. Há velhos negócios que fecham por serem considerados obsoletos, há gente expulsa do centro da cidade, há casas que vão ser destruídas para dar lugar a arranha-céus. Há teatros que só recebem “grandes produções”, e os outros fecham as portas aos seus jovens artistas. A tecnologia ajuda: “email não recebido”, “o diretor tem muitas reuniões”, “isso não se enquadra na nossa programação”. Lisboawood, quer ser Hollywood mas não passa de um bosque de prédios, hotéis, negócios, parcerias chorudas entre arquitetos pouco escrupulosos e políticos demasiado manipuláveis. Os mais pobres, os artistas, as mulheres sozinhas com os filhos, todos vão, a pouco e pouco sendo expulsos para as periferias. É difícil ver esta frenética e melancólica cidade sem pensar na distopia escrita por Andrei Platonov, nos anos 30, do século XX: Escavação. O romance. considerado a primeira distopia sobre o regime comunista, foi também o primeiro ataque aberto ao mesmo. Em escavação o regime também se ocupa da construção de um grande edifício que vai albergar todo o povo soviético. Um edificio-revolução, cuja escavação do buraco das suas fundações é uma tarefa eterna, “sísifica” e onde os homens que escavam noite e dia em nome de uma utopia, vão perdendo o lugar heroico de membros do povo para se tornarem meros fantasmas de uma utopia tornada motor de destruição.

Todos os 22 elementos desta peça são atores e músicos profissionais. Este é o seu  segundo trabalho e prometem não desistir de si mesmos. Fotografia © Leonor Fonseca

É assim Lisboawood: um lugar onde uma presidente, em gestos mecânicos, promete ser para todos. Exceto que esses “todos” são aqueles que se adaptam ou podem comprar este modelo formatado de vida. O ator/encenador/músico João Cachola tinha 23 anos quando começou a escrever esta peça, hoje tem 26. Em 2018 fundou o coletivo As Crianças Loucas, porque “estava farto de não ter emprego”, do discurso constante do “tens de ir estudar lá para fora, ganhar currículo”, “de um meio artístico cujo problema central nunca é a Arte, a criação, a renovação, a vida, mas é sempre o dinheiro”, de “um pais que, cada vez mais endeusa a ciência e despreza a arte”, onde as pessoas valorizadas “são aquelas que se limitam a repetir formulas do passado, textos gastos”, onde “os teatros giram em torno de um encenador-sol” e “rejeitam tudo o que é diferente do seu gosto” mas, sobretudo “que não têm abertura nenhuma para as novas gerações e o que elas podem dizer e trazer”.

Depois de escrito este musical, num país que tem pouca tradição nos musicais e onde eles tendem a ser considerados “pirosos”, talvez porque as pessoas não conheçam o conceito de “Obra de arte Total” de Wagner e de Brecht, como João Cachola conhece e manipula não sem algum receio de ser considerado “pedante”, mas traz à baila também João César Monteiro, Paulo Rocha, Tckekov.

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Na peça o ator e encenador João Cachola representa o macaco que vive um romance com a menina do arame. Uma metáfora de todas as ligações que a cidade condena ou impõe. Imagem: ©Leonor Fonseca

Mas a verdade é que, numa conversa de hora e meia com o Observador, no final do ensaio geral de Lisboawood, com vinte e duas pessoas em palco, entre atores e músicos e uma equipa total de 40 pessoas, Cachola mostrou que domina a arte de pensar, que tem ferramentas conceptuais que lhe sustentam o discurso que oscila entre o destemido, o crítico e o melancólico: “estamos sempre em cima do arame no limiar da queda, na iminência da falha, da perda, da doença, da morte e este espetáculo incorpora isso em todas as suas personagens, como integramos os acontecimentos políticos, as dificuldades, as portas que se fecharam na nossa cara. Se é preciso estar atento ao erro, aos nãos, também é preciso que isso não nos faça desistir. E, de entre as muitas coisas que queremos dizer nesta peça a principal é essa: nós temos uma voz, um corpo, uma vida e não vamos desistir dos nossos sonhos.”

Este desabafo é também um repto a todos os que foram ver a peça e um desafio a todos os que lhes fecharam as portas. Se em Lisboawood os jovens ou se adaptam ou fogem para longe, na Lisboa de 2021 as coisas não são diferentes:

“Começamos a preparar este espetáculo há três anos, sem dinheiro nenhum. Entretanto foram-se juntando mais pessoas ao projeto, ganhámos apoios financeiros. Somos 17 atores e mais os cinco músicos, os Zarco, que atuam ao vivo. Tínhamos o espetáculo montado, os apoios financeiros mas não tínhamos sala onde estrear. Apresentámos o projeto a todos os teatros da cidade de Lisboa e todos nos disseram ‘Não’, até que o Miguel Seabra e a Natália Luísa nos abriram as portas do teatro Meridional, tal como em 2017 a Fernanda Lapa, da Escola de Mulheres nos abriu a porta, e aí não tínhamos sequer dinheiro nenhum. é preciso repetir o nome destas pessoas muitas vezes, porque eles não têm medo que os mais novos lhes tirem o lugar, e estão disponíveis para ver e ouvir novas dramaturgias, novas vozes, novos atores e atrizes”, conta o encenador.

“Tudo corre bem na cidade monstruosa”

A presidente manipulada e manipuladora de Lisboawood, numa grande interpretação da atriz Cirila Bossuet,  Imagem: ©Leonor Fonseca

Lisboawood, como todas as cidades modernas promete aventura, poder, alegria. O discurso político não cessa de repetir a promessa de “crescimento”, de “cidade verde”, de “transformação”. Feérica e destrutiva, esta cidade paradoxal tanto promete um entretenimento sem fim, como ameaça constantemente destruir tudo o que se foi construindo, tudo o que se sabe, tudo o que se é. E de repente, a cidade do futuro não é mais que a reinvenção do mito de Fausto, de Goethe, o alquimista que faz um pacto com o diabo, e em troca da sua alma recebe o poder infinito sobre o conhecimento, a tecnologia, o progresso.

Há uma geladaria (numa evocação de João de Deus, n’As Recordações da Casa Amarela), no centro da cidade. O lugar é cobiçado por uma arquiteta ambiciosa que quer construir o mais alto edifício da cidade e a dona e a filha acabam espoliadas por um estrangeiro rico. Tudo com o apoio da presidente da câmara. O povo aplaude. Há um circo decadente que maltrata os artistas e os animais, aqui vivem a menina do arame e o macaco que é obrigado a atravessar arcos de fogo até ao dia que morre e se torna um incómodo. Há uma mãe espoliada do seu saber de geladeira e uma filha que sonha com novos horizontes, deixando a mãe para traz. Há uma professora e as crianças que repetem todas as fórmulas e, por isso, são consideradas os heróis do futuro, há uma prostituta que luta pelos seus direitos, há amores, desamores, encontros e desencontros. Há os que procuram casa, os que têm a cabeça na lua e os que não tiram os pés do chão. E há canções, muitas canções que, dentro de poucas semanas, serão lançadas num álbum.

Uma das personagens afirma: “está tudo bem na cidade monstruosa”. Excêntrica, frenética, cheia de fúria de viver, não obstante o cinismo do nosso tempo tenha proscrito estes sentimentos, trocando-os pelo sentimentalismo que visa a aceitação do estado de coisas. Durante duas horas eles cantam, dançam, saltam, correm, suam. São crianças loucas como o nome do coletivo indica e “nada é impossível para as crianças loucas, nós somos tudo o que quisermos ser”, afirma João Cachola.

Assumindo que esta é uma peça profundamente política e que não teme apontar o dedo, criticar de forma aberta, como já não se julgava possível na arte em Portugal, estes são tudo menos jovens ingénuos que os mais velhos podem olhar com condescendência. Basta ouvir a poderosa voz da atriz e cantora Soraia Tavares, que acaba por se afirmar como a grande protagonista da peça, para sabermos que estamos diante não do futuro mas sim daquilo que já é presente, mesmo que relegado para as margens.

O elenco de Lisboawood é composto por Catarina Rabaça, Cirila Bossuet, Fernão Biu, Gonçalo Bicudo,Guilherme Moura, Inês Pires Tavares, Inês Realista, João Arrais, João Cachola,João Sala, Joe Sweats, Lara Matos, Lara Mesquita, Miguel Galamba, PedroSantos, Raquel Oliveira, Rodrigo Tomás, Sílvio Vieira, Soraia Tavares, VascoBatista, Vicente Gil e Vicente Wallenstein.

A peça fica em cena até 4 de julho no Teatro Meridional. Todas as sessões já estão esgotadas.