Título: Peter Camenzind
Autor: Herman Hesse
Editora: D. Quixote

Publicada em 1903, Peter Camenzind é a primeira novela de Hermann Hesse, que, à altura da publicação, tinha 26 anos. Sem o fôlego que viria a marcar a sua passagem na literatura, já tem pistas dos temas que viriam a tornar-se nos cernes das obras posteriores de Hesse, como a procura pela coesão individual ou o fascínio pela natureza em contraste com a civilização moderna. Como se virá a reparar em Demian (1917), também aqui a arte desempenha um papel de relevo na formação da individualidade e até da identidade.

Na novela de 1903, há um tom poético que subjaz a toda a narrativa. Aliás, a tal não será indiferente a ambição de Peter: ser poeta. A construção da personagem tem vários dos maneirismos da época, sendo já os primeiros passos de outras personagens posteriores de Hesse, como Siddartha e Goldmund, já que, para além de evidenciar uma vida em que se contornam os sofrimentos, também se mostra a própria vida como um labirinto de provas intelectuais, físicas e emocionais. Partindo de Nimikon, a sua aldeia, onde quase todos os habitantes têm o nome Camenzind, Peter partiu para desbravar o mundo, numa ação que entra em contraste com a aparente acalmia, e o certo fechamento, da aldeia:

“(…) e ainda que eu, como é provável, venha a morrer sem deixar filhos, sei que de novo um Camenzind ocupará o velho ninho, se acaso estiver de pé ainda e tiver um telhado a cobri-lo” (p. 13).

Face a esta ideia de imutabilidade, a viagem parece uma aventura, já que cada passo é descoberta. E a própria partida parece transtornar a identidade de Peter, já que este deixa de ser aldeão de Nimikon para se transformar num cidadão do mundo. Tendo perdido a mãe e sendo o pai negligente, dirige-se ao mundo sem amarras, e ali descobre a Universidade, através da qual Hesse trabalha a construção intelectual da personagem e a forma como a intelectualidade transforma o indivíduo. Para além disso, Peter apaixona-se por Rose Girtanner e trava amizade com Richard.O coração partido e a morte do amigo criam no protagonista a aura de um sofredor.

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Posteriormente, vai apaixonar-se por Elizabeth, e irá vê-la casada com outro homem. O álcool, pela sua jornada, vai funcionando como uma forma de amansar a vida. Procura a beleza nas coisas, mas sublinha o sofrimento. E então trava amizade com Boppi, um inválido cuja morte nas mãos de Peter é uma libertação:

“Mas ele abriu de novo os olhos, olhou-me com um ar travesso e moveu as sobrancelhas, como se quisesse acenar-me. Ergui-me, coloquei a mão sob o seu ombro esquerdo e, com cuidado, levantei-o um pouco, o que lhe fazia sempre bem. Assim deitado sobre a minha mão, contorceu uma v ez mais os lábios numa breve dor e, depois, voltou a cabeça um pouco e estremeceu como se tivesse frio de repente. Foi a libertação.” (p. 193).

Tendo viajado e conhecido gente e mundo, acaba por voltar para a aldeia para cuidar do pai envelhecido, encafuando-se de novo naquilo de que quis fugir. O pai, por sua vez, continua indiferente a ele.

“No fundo, não pode esperar-se de um velho camponês endurecido, que nem nos seus tempos mais florescentes fosse um modelo de virtudes, que nos dias de doença da velhice se torne dócil e se sinta tocado pela cena do amor filial. Também o meu pai não o fez, e quanto mais doente mais voluntarioso se tornava; ele fez-me pagar tudo aquilo com que em tempos o atormentara, se não com juros, pelo menos até ao último tostão.” (p. 196)

Nesta altura, a descoberta do mundo parecerá inútil, ou será pelo menos irónico que tenha voltado para ali. Aqui, o leitor poderá questionar-se de que serviu a viagem, mas é mesmo Peter quem responde, à sofredor outra vez, acrescentando uma angústia em cima de outra:

“E qual foi o resultado de tantas viagens errantes e anos desperdiçados? A mulher que eu amava, e amo ainda, educa em Basileia os seus dois lindos filhos. A outra, que me amava, consolou- se e continua a vender fruta, hortaliça e sementes. O meu pai, por causa de quem regressei ao ninho, nem morreu nem sarou, e senta-se diante de mim, sobre a sua caminha de preguiçoso, olha-me e inveja-me pela possa da chave da cave.” (p. 204)