Em 1973, o cineasta sueco Ingmar Bergman realizou para televisão uma série em seis episódios, a que chamou “Cenas da Vida Conjugal”. Cada episódio correspondia a uma fase do casamento exemplar entre Mariane (Liv Ullman) e Johan (Erland Josephson). Ela advogada, ele professor universitário, com duas filhas e uma rotina onde pareciam confortavelmente instalados. Mas, como escreveu sabiamente Leonard Cohen, “there’s a crack in everything”, em tudo há uma fissura, uma racha, um símbolo de que nada é eterno e tudo está destinado à ruína. E a ruína será tão mais célere quanto mais se fingir que ela não existe.

Johan e Mariane preferem mergulhar numa vida regulada por rotinas inquebráveis, desde a hora em que toca o despertador aos almoços de domingo em casa dos país, as idas ao teatro (Ibsen e Strindberg estão latentes em todo este texto), o sexo. Ao longo de seis horas na série de TV (que passou em Portugal nos anos 80), das cinco horas da versão feita para cinema, ou nas duas horas e meia nesta proposta da encenadora Rita Calçada Bastos, somos confrontados sem qualquer piedade pela dissolução de um casamento, pela transformação do amor em ódio até ao apaziguamento que está longe de ser um final feliz.

Cenas da Vida Conjugal, não é uma colagem a Bergman, é uma revisitação de uma das mais cruéis e inesquecíveis obras do encenador, cineasta e escritor sueco, que se estreia hoje na sala Mário Viegas, no Teatro S.Luiz, em Lisboa, protagonizada por Ivo Canelas e Katrin Kaasa, atriz de origem norueguesa (como Liv Ullman) e com encenação de Rita Calçada Bastos. O vídeo é assinado pelo realizador João Canijo (que também tem no seu currículo uma encenação teatral do filme mais emblemático de Bergman: Persona, também com Katrin Kaasa como protagonista).

Ivo Canelas e Katrin Kaasa conseguem descolar das interpretações de Liv Ullman e Erland Josephson, deixando-nos igualmente destroçados. (Foto: © Estelle Valente/Teatro São Luiz)

Rita Calçada Bastos contou ao Observador que conheceu Bergman no Conservatório com o livro Lágrimas e Suspiros e desde então tinha vontade de fazer alguma coisa com ele. “Há cerca de três anos a Olga Roriz fez um espetáculo de homenagem ao Bergman e convidou-me para participar, depois a Katrin Kaasa lançou-me o repto de fazermos As Cenas da Vida Conjugal. Ela traduziu o livro do sueco e nós partimos da série de TV e não do filme. Queríamos muito fazer uma versão nossa. Encurtámos o texto, de cerca de cinco horas para duas horas e meia. Retiramos muita coisa, integramos a nossa leitura, as nossas experiências pessoais. Não queríamos trazer para palco uma colagem ao filme ou à série mas sim, trazer aquele texto para os dias de hoje, confrontarmo-nos com ele e confrontarmos a forma como o nosso imaginário coletivo normalizou aquilo que é o casamento e o amor.”

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A casa é o lugar central de um casamento, o palco da sua dramatização diária. A sala com o seu sofá, a cozinha, o quarto, “as sombras de tudo o que chamam lar”, como descreveu Chico Buarque. Poucos escritores conseguiram escrever obras magistrais sobre uma casa e o terror do que acontece nos seus interiores. Entres eles estão claro o norueguês Ibsen e os suecos Strindberg e Bergman. Nas suas obras o terror nunca vem de fora, mas de dentro, de dentro de nós. Dos demónios que cada um carrega dentro de si e que no espaço familiar fechado tendem a aparecer de forma mais latente e depois de forma mais manifesta.

Por isso e com as curtas verbas que teve para este projeto, Rita Calçada Bastos montou um cenário com uma mesa emprestada pela Olga Roriz, trouxe as cadeiras da sua própria casa, conseguiu uns moveis emprestados pelo Teatro Experimental de Cascais e um sofá-cama oferecido por uma marca de mobiliário. Mas toda esta triste respiga, que parece ser o fado do teatro em Portugal, se apaga face à escrita fulgurante do maior de todos os “analfabetos emocionais”: Ingmar Bergman, aquele que com uma simplicidade desarmante, afiada como uma faca que se vai espetando lentamente nas nossas auto-ilusões, nos mostra a degradação de um casamento, as mentiras sobre as quais ele se sustenta e as verdades que ele desistiu de encarar para se manter de pé: desde logo o fim do desejo sexual, a força das convenções que formatam a nossa perceção de como queremos amar e ser amados, os filhos de quem não se gosta (um tema que se mantém um tabu social e um drama e que Bergman vive na pele, enquanto pai de 8 filhos com os quais sempre teve relações escassas e difíceis) e que vai transportar para vários dos seus filmes e peças teatrais.

“Como vamos educar crianças se nós próprios não passamos de analfabetos emocionais?”, pergunta Johan a certa altura. A (im)possibilidade do Amor e a (im)possibilidade de Deus, são dois temas transversais a toda a obra do cineasta, e que juntos nos levam à questão “qual é o sentido da vida?”, que ele vai abordar magistralmente no filme O Sétimo Selo.

Mariane/Katrin Kaasa é uma mulher presa à força das convenções, que vai passar por uma metamorfose (Foto: © Estelle Valente/Teatro São Luiz)

“Aquilo que me interessou como linha dramatúrgica”, explica a encenadora portuguesa, “foi pensar nesta vida vida em que somos engolidos pelo tempo e dilacerados pela rapidez com que tudo passa, como é que nós conseguimos salvar o amor, captando a crueza do Bergman a tratar as relações humanas. É uma questão que me interessa também pessoalmente: será que não andamos a saltar de relação em relação por achar que são os outros os demónios e não estarão afinal o nossos demónios dentro é de nós? E repetidamente os vamos espelhando nas pessoas com quem nos cruzamos? Em que medida é que podemos fazer o amor sobreviver, sobretudo em relações de muitos anos? Acho é sempre possível, mas não da forma como esperamos, ou como o nosso imaginário coletivo instituiu como normal. O amor é um sentimento com muitas expressões e, por vezes, a salvação do amor não passa pelas pessoas ficarem juntas, mas talvez só separadas elas possam manter o amor, como esta peça mostra. Porque o amor se vai transformando ao longo do tempo, tal como nos.”

No meio da noite, numa casa escura em algum lugar do mundo

Mariane e Johan estão juntos há dez anos quando, numa noite, na casa de campo, ele anuncia que se apaixonou por outra mulher e vai partir com ela para Paris. Incapaz de aceitar a hecatombe e presa a uma normalidade naturalizada como “boa educação” ou “gentileza”, ainda se oferece para lhe fazer a mala. Aqui as rachas tornam-se frestas e as frestas buracos que não há como tapar. A verdade vem à superfície, mas, ao contrário do que se julga, ela é complexa, incoerente, paradoxal: Johan ama Mariane, mas apaixonou-se por outra mulher essa paixão insufla-lhe vida, animo. Ele parte, ela fica destroçada no seu vale de lágrimas mas, e voltando a Leonard Cohen, “There is a crack in everything. That’s how the light gets in…”.

A cama, lugar de todos os segredos e de todas as mentiras num casamento. (Foto: © Estelle Valente/Teatro São Luiz)

Sem as brechas, sem os buracos não entraria a luz do sol, a luz do novo dia, é sempre da ruína que se recomeça. A partir daqui, Mariane vai reconstruir-se, vai aprender mais sobre si mesma e sobre o amor. Nunca totalmente desligada de Johan, mas aberta a outros amores onde se vai pôr à prova. Com a passagem do tempo, esta história decorre num período de 20 anos, o casal vai passar do amor ao ódio até à vontade de se destruírem, de se matarem um ao outro. Esta destrutividade que vem à superfície dentro das relações amorosas (sejam de que natureza forem) Bergman explora-a também em Morangos Silvestres, A Paixão de Ana, Luz de Inverno. No final, nunca totalmente felizes, nunca totalmente apaziguados, Mariane e Johan percebem que o seu amor um pelo outro nunca acabou, mas inevitavelmente ganhou uma nova forma de se realizar.

O desencanto de Bergman nas relações humanas e a simplicidade com que fala disso; absolutamente cruel e desarmante. Ele consegue, como poucos, mostrar os meandros da alma humana, as suas vilezas, perversidades, medos, traumas. Cada filme dele é tão avassalador que é impossível a pessoa passar por eles sem se confrontar consigo mesma.” É isso que Rita também espera que os espetadores façam depois de ver esta peça, que olhem para as suas relações e procurem nelas as os segredos e mentiras, o amor adiado, os problemas varridos para baixo do tapete.

Inseguro, imaturo Johan procura nas suas relações com diferentes mulheres uma saída para a sua permanente sensação de derrota e fragilidade. (Foto: © Estelle Valente/Teatro São Luiz)

“Não queria que estas personagens fossem uma cópia de Liv Ullman e Erland Josephson. O Ivo Canelas não quis sequer ver o filme do Bergman para não ficar colado à personagem de Johan,  trabalhou só a partir do texto. Com Katrin tivemos que fazer um trabalho de descolagem da interpretação de Ullman. Este é um trabalho muito denso, emocionalmente esgotante, e com pouco dinheiro, a tentar resolver todos os problemas logísticos. De qualquer forma, gosto de cenários minimalistas porque o me me interessa como encenadora é ver como é que os atores se apropriam do texto e o materializam em cena. E esta peça é um jogo de atores puro e duro. Eles estão aqui com tudo o que têm e tudo o que lhes falta. Porque interessa-me essa verdade. Toda a gente que se quer conhecer devia ter oportunidade de ver a obra do Bergman”, afirma Rita Calçada Bastos.

A peça fica em cena até 4 de Julho terça a sábado, 19h30; domingo 16h:  A encenadora e os actores esperam conseguir fazer algumas digressões até porque todas as sessões no S. Luiz já estão esgotadas. 

No dia 26, sábado, pelas 17.30, haverá uma conversa com o público, na sala Bernardo Sassetti sob o tema “A importância de Ingmar Bergman na vida de todos nós”, com a presença de Helena Pilsas, Embaixadora da Suécia em Portugal, Aida Tavares, Diretora Artística do Teatro São Luiz, Maria Quintans, dramaturga, João Canijo, realizador, Rita Calçada Bastos, encenadora e atriz,
Ivo Canelas, ator e Katrin Kaasa, atriz. A entrada é livre mas sujeita à lotação da sala.