O que faz um guitarrista-estrela nos seus tempos livres? A trivia pop diz-nos que muito provavelmente o guitarrista-estrela senta-se à piscina, liga ao dealer, rodeia-se de babes que lhe trazem drinks ao final da tarde. Mdou Moctar tem uma forma diferente de passar o tempo: em vez de ficar sentado à piscina, ele abre poços: “Cada vez que fiz um disco abri poços”, contava recentemente à revista Dazed. “O acesso a água é um problema no Níger, por isso tenho andado a viajar pelos lugarejos, a providenciar assistência às pessoas na abertura de poços”, continuava.
Talvez a ideia ocidental de estrela seja diferente da ideia africana – enquanto quilómetros de cocaína entram nos narizes das estrelas ocidentais, que passam quase tanto tempo em palco como em reabilitação, as estrelas do deserto tendem a ajudar o seu povo – uma tradição que remonta a Ali Farka Touré e passa pelos Tinariwen.
Farka Touré terá sido o primeiro guitarrista africano a atingir dimensão internacional e expor-nos ao que ficou conhecido por “blues do deserto”, uma expressão pouco precisa, mas eficaz a descrever os volteios ao longo da escala pentatónica que marcavam a sua música. Nenhum deles, por mais que defendesse a cultura do seu povo, era um purista: Touré conhecia os blues americanos, os Tinariwen adoravam Elvis – e Moctar, o mais novo de todos e o mais recente a ser admirado pelos ocidentais, é fã de Hendrix.
Essa combinação entre tradição local e outra cultura remota, em que encontram ecos da sua, revela-se por vezes extraordinária – é o caso de Moctar, que nasceu na década de 80 em Abalak, no sudoeste do rio Níger, que atravessa um país constituído, em 75% do seu território, por um deserto (o do Saara). É Tuareg, um povo historicamente nómada, que vagueia pelo Saara, dedica-se ao pastoreio e fala Tamasheq, a língua em que Moctar canta a maior parte das suas canções.
Há uma longa tradição de música tuareg, e Moctar desde cedo se deixou encantar pela musa da pentatónica; os seus pais, extremamente religiosos, preferiam que ele se dedicasse a outros afazeres, mas o seu amor pela guitarra de Abdallah Ag Oumbadougou era tanto que, apenas com 10 anos, ele construiu uma guitarra por si próprio e ensinou-se a tocar; até hoje nunca teve uma aula.
No Saara a música não se ouve no Spotify nem no Youtube – é carregada em cartões de memória e escutada em telefones. Foi assim que as primeiras gravações de Moctar atravessaram o deserto, encantando os ouvintes de passagem com a sua estranha mistura de solos de guitarra e caixas de ritmo e autotune. Como sempre, como dantes, o velho e o novo, o local e o estrangeiro seduziam-se mutuamente nessas primeiras faixas de Moctar, que criavam um som único.
A sua evolução foi no sentido de um som mais próximo de uma banda ao vivo (bateria, baixo, duas guitarras), marcado pelos arabescos da guitarra que constantemente explode em vertigens de eletricidade; os ritmos alteiam-se com frequência, há palmas e, não raro, uma espécie de call-and-response aparentado de gospel, quando os coros respondem a riffs da guitarra e esta dá troco aos coros.
[“Afrique Victime” ao vivo:]
Isto é notório na faixa-título de Afrique Victime, que começa só com voz (o que é raro nele) para de imediato introduzir um riff psicadélico que posteriormente se desdobra num quase funk, enquanto ao seu redor vozes se levantam em coros de uma beleza da dimensão do céu no Saara; o trabalho de bateria é um assombro, atacando a zona da anca, enquanto a guitarra se liberta e se entrega a uma sucessão diabólica de notas e o ritmo, já de si elevado, aumenta, tornando Afrique Victime impróprio para sessões de step para maiores de 40 anos. E neste momento já não estamos no Saara, estamos no espaço e da guitarra sai o mesmo tipo de ruído que ouvíamos nos discos dos Sonic Youth dos anos 80, só que sem ritmos quadrados a acompanhar e o que se passa nestes dois, três, últimos minutos é da ordem da maluqueira total e é preciso urgentemente ver esta faixa tocada ao vivo.
Quando a faixa acaba podemos ainda estar no Saara, mas estamos muito longe do novo Prince, que foi a etiqueta colada a Moctar quando este surgiu. Um dos cartões com a música de Moctar chegou às mãos do blogger e musicólogo Chris Kirkley, que não desistiu enquanto não encontrou Moctar – o que conseguiu uns anos depois.
Kirkley resolveu editar Moctar na sua editora Sahel Sounds e, por forma a promovê-lo, criar um filme inspirado em “Purple Rain”, de Prince. Como não existe nenhuma palavra em tamasheq para roxo ou púrpura o filme acabou por chamar-se “Akounak Tedalat Taha Tazoughai” – “Chuva Azul Com Um Pouco de Vermelho”. Foi o primeiro filme integralmente em tamasheq e criou um culto imenso ao redor de Moctar.
[O trailer de “Akounak Tedalat Taha Tazoughai – Chuva Azul Com Um Pouco de Vermelho”:]
Desde então Moctar tem editado a um ritmo preciso de um disco a cada dois anos: a Afelan (de 2013) seguiu-se a BSO de “Akounak Tedalat Taha Tazoughai” (de 2015); Sousoume Tamachek veio dois anos depois e mais dois anos se seguiram até surgir Ilana: The Creator, o disco que o tornou mais visível para os ocidentais. Mais dois anos e eis Afrique Victime, cuja penúltima faixa é a homónima.
Mas quando “Afrique victime”, a faixa homónima ao disco, acaba deparamos com “Bismilahi atagah”, a nona e última faixa de Afrique Victime, um disco dedicado aos problemas que os africanos encontram diariamente (a água, a guerra, a saúde), a guitarra elétrica é pousada e ficamos só com guitarras acústicas, percussões acústicas, palmas, coros e, deus, como é belo o céu visto do Saara, quando nos deitamos nas suas areias.
Agora Moctar já não edita pela Sahel Sounds, mas sim pela Matador, uma label indie de vasto alcance mundial; já não almeja a ser Prince – na realidade, não podia estar mais longe: se forem a Tahoua, onde ele vive, veem-no a passear na rua com o seu filho de dois anos, a tocar com amigos ou em festas e casamentos e até podem alugar o carro dele por uma quantia modesta. É dúbio que alguém tenha alguma vez alugado o carro de Prince.
[“Chismiten”:]
Entra-se em Afrique Victime por “Chismiten” e somos logo assaltados por um riff pleno de arabescos, secundados por palmas, e quase de imediato o rock psicadélico desdobra-se em ritmos propícios a espasmos na anca; por todo o disco será assim: as palmas, os coros em call-and-response e aquela guitarra a libertar-se dos freios e a voar, como uma serra elétrica que de repente ganhasse asas.
O ritmo não é sempre tão elevado: além da já mencionada “Bismilahi atagah” há “Ya habibti”, que também parte de guitarra acústica, e é composta de um riff mais simples – tremendamente eficaz na sua simplicidade, tem as palmas a marcar o ritmo mas este não explode, antes mantém sempre um balanço aprazível de final de tarde. No meio do incêndio de Afrique Victime, “Ya habibti” é uma pacata e ternurenta lareira.
Quando a pandemia o permitir, Moctar vai partir em digressão, ele que nos dois anos anteriores ao surgimento da Covid deu mais de 500 concertos; com o dinheiro que fizer do merchandising pretende construir uma escola para raparigas na sua terra. Não, Moctar não é Prince, mas enquanto nos encantarmos com a chuva azul com um pouco de vermelho da sua guitarra haverá mais poços a serem abertos.