A Provedoria de Justiça recebeu, no ano passado, 847 queixas relacionadas com os apoios extraordinários criados como resposta à pandemia, o que representa 25% das reclamações no dossiê da proteção social.

“Num ano marcado pela pandemia da COVID-19, verificou-se que um número significativo de queixas teve por objeto matérias relativas a políticas e programas criados para mitigar os seus efeitos”, lê-se no relatório de atividades da entidade liderada por Maria Lúcia Amaral, entregue na Assembleia da República esta quinta-feira. Ao todo, foram recebidas 1.000 queixas nas quais versavam, “em especial, os apoios extraordinários, nomeadamente às famílias e aos trabalhadores, as quais determinaram a abertura de 847 processos, tendo as restantes sido incorporadas (73), indeferidas liminarmente (31) ou consideradas exposições gerais (49)”.

Entre os problemas identificados estavam, no caso do apoio à redução da atividade profissional dos trabalhadores independentes e sócios-gerentes, as “condições de acesso, o montante dos apoios fixados na lei, o cálculo dos apoios, os atrasos nas decisões dos requerimentos e as decisões de indeferimento insuficientemente fundamentadas”. As condições de acesso foram também reportadas nas queixas relativas ao pagamento do subsídio de doença por isolamento profilático, subsídio por doença Covid-19 e apoio excecional à família (devido ao encerramento das escolas).

Outros problemas foram a “falta de informação” sobre as medidas e a “falta de resposta dos serviços aos pedidos de informação”, além da “falta de atualização dos dados do sistema de informação da segurança social (SISS) necessários para a atribuição dos apoios“.

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Além disso, como já tinha criticado a Provedoria, foram reportados casos de pessoas que estiveram em layoff e que no registo de remunerações relativo a esse período ficou refletido, ao contrário do que dita a lei, não o salário habitual, mas o ordenado com os cortes daquele regime, o que as prejudicou no cálculo e montante de prestações sociais como o subsídio de gravidez de risco, o subsídio parental e os subsídios de doença e de desemprego. A situação só começou a ser corrigida recentemente, em abril e maio.

Provedora de Justiça pede “urgência” na correção dos cortes nos apoios a trabalhadores em layoff ou apoio à família

Já as queixas sobre as prestações de desemprego (subsídio de desemprego, subsídio social de desemprego inicial ou subsequente e subsídio por cessação de atividade) representaram 13% do total — foram 421, um aumento de 147% face a 2019. A esta evolução “não é alheia, obviamente, a grave crise económico-social resultante da pandemia por Covid-19 que determinou muitas situações de desemprego involuntário”. Em causa estão reclamações sobre o prolongamento automático do subsídio de desemprego e a alteração dos prazos de garantia.

Há um “larguíssimo espetro” de queixas

O relatório refere ainda que a pandemia de Covid-19 e as medidas para a combater foram responsáveis por um “larguíssimo espetro” das queixas que a provedora de Justiça recebeu ao longo de 2020, nomeadamente em áreas como saúde, relação laboral ou direitos dos imigrantes.

Nesse sentido, a provedora de Justiça aponta que as questões relativas a habitação — agregados familiares em situação de grande vulnerabilidade, pessoas sem-abrigo, habitação social — aumentaram 55,3% face a 2019.

“Do mesmo modo, acentuadamente cresceu o número de queixas relativas a direitos dos estrangeiros”, refere a provedora, apontando que estão em causa questões relacionadas com processos de atribuição de nacionalidade portuguesa e regularização de pessoas já entradas em território nacional. Por outro lado, “cresceu também de forma acentuada” o número de queixas em matérias de saúde, tendo-se registado mais 52% do que no ano anterior, e em assuntos relativos a educação, onde o aumento foi de 25%.

“Num plano completamente diverso, e ainda a título de exemplo, de registar ainda o maior número de problemas que nos foram colocados a propósito de atrasos verificados na tramitação de processos deregulação das responsabilidades parentais”, refere Maria Lúcia Amaral, sublinhando como os dados demonstram o quanto a pandemia veio afetar todas as dimensões da vida.

A provedora refere mesmo que, no final de 2020, foi possível constatar que os “temas Covid” representavam 22% do total dos problemas que chegaram à instituição, mas explica que a opção foi a de não incluir esse número nas estatísticas pelo facto de a separação entre temas Covid e não Covid ainda não ser fiável, uma vez que a pandemia afetou “todos os setores da vida”.

Mais vulneráveis foram os mais afetados

A pandemia afetou os mais vulneráveis, como idosos, crianças e pessoas com deficiência, o que se refletiu nos contactos com a Provedoria de Justiça, especialmente dos cidadãos idosos. No documento, diz-se que a pandemia “teve reflexos assinaláveis” e que tal se refletiu nos contactos recebidos pela estrutura da Provedoria que trata as questões ligadas a idosos, crianças e pessoas com deficiência.

Assim, e devido ao recolhimento domiciliário, baixaram queixas mais frequentes, mas subiram outras relacionadas diretamente com a pandemia. Segundo o documento a Linha do Cidadão Idoso recebeu 417 chamadas diretamente relacionadas com a Covid-19 (14% do total de chamadas) e a Linha do Cidadão com Deficiência recebeu 86 (também 14%).

Em relação aos idosos, cujo número de chamadas subiu 07% em relação a 2019, muitas delas estavam relacionadas, por exemplo, com as visitas a idosos em lares. Mais procurada por mulheres e por pessoas a partir dos 70 anos, a linha teve como questões mais frequentes as relacionadas com respostas sociais de serviços de apoio, com a saúde, com serviços públicos e com as pensões.

Diz o documento que o elevado número de chamadas sobre questões sociais “é revelador, tanto da situação de dependência e vulnerabilidade em que se encontram inúmeros idosos, como da falência dos tradicionais suportes familiares existentes até algumas décadas atrás”.

E acrescenta: “Continuaram a ter relevância os assuntos referentes a situações de abuso contra os mais velhos, como a negligência de cuidados, os maus-tratos, a violência doméstica, o abandono e o abuso material e financeiro, que totalizaram 191 chamadas (6% total)”. Os números, segundo a Provedoria, não diferem muito de outros anos, com exceção da violência doméstica, assunto que mereceu muito menos chamadas.

No entanto aumentaram as solicitações sobre serviços públicos e pensões, especialmente motivadas pelas dificuldades de contacto com os estabelecimentos e pela falta de resposta a pedidos de informação. O encerramento de centros de dia, a justificação de faltas ao trabalho para cuidar de idosos, a forma de receber as pensões, as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, o apoio domiciliário, a necessidade de apoio para compras ou medicamentos, ou o acesso a prestações sociais foram temas que motivaram contactos com a Provedoria e que estiveram relacionados com a pandemia de Covid-19.