O Chega tem um “problema de alma”, um problema de identidade e de “autoidentidade” que o partido procura resolver através do novo programa político. É com um documento muito mais pequeno, com parágrafos curtos e numerados que o Chega entende ser possível criar uma “identidade coletiva”, que inclua todas as tendências do partido e que seja claro para os eleitores. No programa — que era para ser discutido no III Congresso do partido, em Coimbra, e que André Ventura decidiu remeter para o Conselho Nacional — o Chega vai deixar implícita a abertura a uma confederação de direitas e estabelece linhas que se enquadram nos ideais que quer manter enquanto partido na oposição, mas também para ser governo, um objetivo já traçado pelo líder do partido.

Para o futuro ficam as políticas setoriais, que o Chega vai guardar, segundo o dirigente nacional Diogo Pacheco Amorim, para um “momento mais próximo das legislativas“, que vão acontecer em 2023. Se havia a expectativa de existir um novo programa político no Congresso do Chega no final de maio, que depois foi adiado para o Conselho Nacional de 2 e 3 julho, afinal serão precisos mais dois anos para conhecer propostas mais concretas e as reformas que o Chega propõe para o país.

Diogo Pacheco Amorim explica que estas questões não estão presentes no programa que será discutido no fim desta semana, mas as “grandes linhas orientadoras” podem “estar implícitas”. Implícito também está um “ponto de abertura à confederação de direitas”. O programa não o define, “não há uma instigação”, segundo Gabriel Mithá Ribeiro, mas existe uma “sugestão”, tendo em conta que se definem as “barreiras nas quais o Chega se move” e cujo intuito é “criar uma relação de confiança com a sociedade e também com as forças políticas”.

Nos próximos dias 2 e 3 de julho o programa — que conta atualmente com 60 páginas — vai ser substituído por um documento com cerca de 15 páginas. A poucos dias do Conselho Nacional, Gabriel Mithá Ribeiro, vice-presidente do partido e coordenador-geral do gabinete de estudos do partido, admite que ainda faltam alguns pormenores, mas considera “sensata” a ideia de a discussão do programa ser feita entre conselheiros. Trata-se de um programa que “tenta ser original”, não ir atrás de outros modelos europeus, mas sim apostar numa “linha renovadora” que possa vir a servir de exemplo para outros.

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Lenine dizia que uma minoria organizada vale mais do que uma sociedade inteira”, diz Mithá Ribeiro

Um dos maiores problemas (e ao mesmo tempo desafios) está na “alma” do partido. O dirigente considera possível que este Conselho Nacional possa ser o “clique da alma do Chega”. “A identidade do Chega foi muito definida de fora para dentro, foram os outros que decidiram o que era racista, xenófobo, neonazi, populista”, aponta, referindo que este documento pretende travar a “identidade [que foi] imposta autocraticamente de fora para dentro”. Mas a responsabilidade não é apenas daquilo a que chama de “violência moral e terrorismo intelectual” e que diz vir “de fora”.

Mithá Ribeiro considera que o Chega tem “responsabilidades nisso” porque se limita a dizer “o que não é” e não contra-argumenta. Para o explicar, o vice-presidente do partido recorda que “o Chega não definiu uma identidade e não se pode fazer de vítima” e vai à esquerda inspirar-se, ao usar uma ideia de Lenine: “Dizia que uma minoria organizada vale mais do que uma sociedade inteira”. “É tentar construir isso”, aponta, ao realçar que “o Chega equivale às minorias que critica”, tendo em conta que “é alvo de todo o tipo de críticas”. “Mas as outras minorias estão barradas da política e faz o contrário com o Chega”, acrescenta. Contudo, realça, o Chega vive e cresce disso. “As críticas são a força do Chega. Quando deixarem de criticar o Chega, o Chega não progride”, atira, frisando que é preciso fazer do partido uma “instituição sólida” e capaz de “dar o peito às balas às críticas”.

É exatamente isso que o responsável pelo novo programa político procura fazer. Para um “discurso mais ou menos concertado a atacar o Chega”, Mithá Ribeiro quer que passe a haver uma “resposta comum” que diz não existir. Consciente de que há uma “disputa identitária”, considera que o documento deve ser a resposta para que haja “palavras comuns, ideias comuns um discurso comum”, pensado como um todo, como uma “identidade coletiva”.

No fundo é preciso “dar um passo no sentido da maior maturidade do Chega” e é por isso que, segundo o dirigente, o programa conta com “linhas adequadas para ser partido, oposição e governo”. Uma das partes do programa é “aberta a valores universais” e pode, aos olhos dos dirigentes, ser um “ponto de abertura à confederação de direitas” e há ainda outra que funciona como uma “orientação geral na sociedade e na política” e que pode servir as intenções de governo. De fora fica a referência — as pastas estabelecidas pelo Chega caso chegue ao Executivo. São assuntos para mais tarde, para “mais perto das eleições legislativas”. Ou seja: atira o assunto para 2023.

Pacheco Amorim explica que o programa, através da matriz ideológica e das indicações genéricas, pode apontar para as “principais políticas setoriais”, as que são mais e menos importantes para o partido e as linhas a seguir, mas apenas através de “linhas muito gerais”. Assim, só mais tarde haverá conhecimento de medidas concretas para os vários setores e áreas de governação, bem como do programa eleitoral com que o Chega se vai apresentar às próximas legislativas.

Este é um tema que levantou questões ao partido logo depois das eleições de 2019, quando André Ventura foi eleito como deputado à Assembleia da República. O Chega chegou a apagar o programa eleitoral do site poucos meses depois, justificando que o iria “clarificar”, mas voltou dias depois a republicá-lo. Este documento propõe o fim dos serviços públicos em algumas áreas, ao dizer, por exemplo, que “ao Estado não compete a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam esses serviços de Educação ou de Saúde, ou sejam os bens vias de comunicação ou meios de transporte” e sugere a “presidencialização do regime, pela acumulação, na figura do Presidente da República, das competências hoje atribuídas ao primeiro-ministro”, fazendo “[desaparecer] a figura do primeiro-ministro”.

O Chega tem de ser moderado nas atitudes e comportamentos para dentro e fora do partido, respeitar as instituições, a democracia e ser cordial”, diz Mithá Ribeiro.

Uma das discussões internas atuais do partido tem a ver com a “moderação vs. radicalização”, uma questão em que até dentro do próprio partido existem posições diferentes. Mithá Ribeiro diz que a dúvida em si não está presente no programa, mas fala na necessidade de uma “pedagogia da cordialidade”. Por outras palavras: “O Chega tem de ser moderado nas atitudes e comportamentos para dentro e fora do partido, respeitar as instituições, a democracia e ser cordial”. Isto porque, realça, “quanto mais forem definidos os valores morais, cívicos e políticos, mais radical é possível ser a nível de ideais e pensamento”.