Neste mundo, quase tudo o que é bom é do outro mundo. Lionel Messi marca um golão? Foi um golão do outro mundo. LeBron James marca 40 pontos num jogo? Fez um jogo do outro mundo. Uma banda dos arrabaldes de Londres faz um bom primeiro disco? É um disco do outro mundo. Por estes dias é raro que alguém que tenha qualidades, tenha qualidades deste mundo – mas talvez seja essa a mais extraordinária característica de Jon Hassel, trompetista americano que morreu este domingo aos 84 anos: tudo o que ele fazia era deste mundo. Mesmo que não o conhecêssemos.

Mais especificamente, Jon Hassell era um admirável músico do “quarto mundo”, um trocadilho com “terceiro mundo” que Hassell criou para designar toda a cultura que escapa aos olhos e ouvidos dos ocidentais. A nossa escala usa 12 notas, separadas por meios tons – mas essa é a nossa escala, a nossa cultura e, noutras paragens, o sublime é alcançado a cada quarto de tom, a percussão é tão ou mais importante que a melodia e o significado cultural e histórico da música é diferente do de uma canção pop no ocidente.

O que Jon Hassell fez, ao longo de uma longuíssima carreira, foi explorar a cultura de todos os mundos que o nosso mundo encerra, e ligar essas culturas à nossa, através de eletrónica e trompete manipulado – música que ainda hoje, quarenta anos depois de ser editada, soa futurista e, no entanto, assenta nas raízes mais profundas do raga indiano ou do kiranic (um estilo de canto indiano), entre muitos outros exemplos.

Talvez nos últimos anos se ouvisse falar menos de Hassell, mas houve um momento em que ele era um dos nomes mais citáveis da música (chamemos-lhe) alternativa: algures ali entre 1977, quando editou Vernal Equinox, o seu primeiro disco a solo, e 1981, quando lançou Dream Theory in Malaya: Fourth World Volume Two, período no qual criou as bases da tal música do quarto mundo, como gostava de lhe chamar.

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[ouça “Vernal Equinox” através do Spotify:]

Pelo meio, em 1980, lançou Fourth World, Vol. 1: Possible Musics, a meias com Brian Eno, talvez o seu disco mais emblemático e onde os pressupostos da música do futuro foram lançados: longos temas planantes, radicados em tradições diversas de música não-tradicional, cujas melodias e ritmos eram imitados e deturpados pelo seu trompete, manipulado eletronicamente.

Vernal Equinox, FourthWorld,Vol. 1: PossibleMusics e Dream Theory in Malaya: Fourth World Volume Two não são discos fáceis nem orelhudos; nunca entraram em tops e dificilmente algum dos seus temas será recuperado por adolescentes no tik-tok; o que fizeram foi abrir a porta a todas as culturas existentes, mostrar que por baixo de uma flor existe um caule e raízes e todas as raízes de todas as flores, algures, se tocam.

Talvez hoje isto pareça normal, numa época em que músicos latinos chegam ao topo das tabelas de vendas ocidentais, que bandas de rock psicadélico criam música que liga bandas-sonoras de cinema a géneros rurais mexicanos, mas nas décadas de 1970, 80 ou 90, no mundo pré-internet, o mundo não estava “ligado” e as distâncias entre culturas pareciam inultrapassáveis. Hassell foi um pioneiro da arquitetura musical, ao mostrar que uma ponte é sempre possível.

Nem todo o seu trabalho foi tão radical ou inacessível: Dressing For Pleasure, de 1994, foi o primeiro disco que ouvi de Hassell – um disco monstro, marcado pelo hip-hop, pelo acid-jazz, tudo culturas musicais que ele ajudou a criar, onde sobressai não só o seu trompete como uma tremenda noção de ritmo. Dressing For Pleasure é uma obra-prima e, em certos momentos, parece de outro mundo.

Do mestre da techno Ricardo Villalobos a esse experimentador louco que é Arca, muitos samplaram Hassell; os que não o samplaram sentiram, direta ou indiretamente, a sua influência. Ninguém sabe muito bem como estas heranças culturais se criam, o que leva um indivíduo a sentir-se atraído pela arte de outro ou pela cultura de um país; mas no caso de Hassell é razoavelmente óbvio de onde lhe veio o interesse pela mistura cultural: nascido em New Orleans, Hassell cresceu rodeado de todo o tipo de música e sempre se disse “honrado por ter nascido no mesmo local onde os blues nasceram”.

Ainda assim, New Orleans não foi suficiente e em breve trocá-la-ia por Nova Iorque, onde estudou serialismo, seguindo depois para Colónia, na Alemanha. Em 1967 voltou aos EUA e estudou com Terry Riley enquanto se doutorava. Hassell não era, portanto, o típico músico de instinto, inconsciente do que faz e como faz. Ouçam a extraordinária “Club Zombie”, de Dressing for Pleasure: ali há raga, dissonâncias, ritmos aparentados do hip-hop, um piano blues, coros gospel, eletrónica, e um trompete marado – este é o ponto em que a imensa sabedoria de Hassell é posta ao serviço de música que é tão desafiante quanto encantatória, sem perder o rumo do que é uma canção.

[“Fourth World Vol.1: Possible Musics”:]

Depois de várias viagens pelo mundo, com a Índia como destino de eleição, Hassell foi-se aproximando do tal conceito de quarto mundo: “Por esses dias, no tempo da Guerra Fria, havia o primeiro mundo e um segundo, do qual não se falava, que era o império soviético. Tudo o que saísse fora desse universo era o terceiro mundo, o que por norma significava países sub-desenvolvidos. Mas esses eram países em que a tradição ainda estava viva e a espiritualidade ainda era inerente à música criada. À falta de melhor termo chamei-lhe quarto mundo”, explicou Hassell, acrescentando que o +1 que atribuiu ao terceiro mundo era uma forma de dignificar essas culturas.

A exploração dessas culturas – que nunca foi apenas imitação ou apropriação, porque Hassell sabia demasiado de música para cair nessas armadilhas – produziu uma dicotomia que ainda hoje marca a melhor música aventureira: criar música simultaneamente primitiva, espiritual mas igualmente futurista e desafiante.

Sendo um músico de músicos, a carreira de Hassell não se ficou apenas pelos seus discos a solo já de si muito marcados pela colaboração — My Life In the Bush of Ghosts, mítico disco a meias entre Brian Eno e David Byrne foi um projeto de Hassell, que aliás escreveu as bases das canções do disco, antes de se afastar, por duvidar do rumo que o projeto estava a levar. Ainda assim, num raro momento de zanga, Hassell revoltou-se por o seu nome não surgir nos créditos das canções, já que fora ele que criara as suas bases.

Apesar disto, Hassell tocou com os Talking Heads – e com mais meio mundo: surge em “Big snake”, de Mainstream (de Lloyd Cole e dos Commotions), em discos dos Tears For Fears, de Ry Cooder (com quem criou uma amizade óbvia, tantas são as coisas que os uniam), de Holly Cole, de Ani Di Franco, entre muitos outros, e escreveu uma série de faixas para Brilliant Trees, o primeiro disco a solo de David Sylvian.

Sem Jon Hassell, muito possivelmente o ocidente nunca teria prestado atenção às chamadas músicas do mundo; mas acima de tudo teríamos demorado muito mais tempo a descobrir que há sempre uma ponte entre duas culturas e às vezes, para as unir, basta um trompete, um admirável, genial, cultíssimo trompete – mas um trompete deste mundo.