Portugal perdeu uma oportunidade de mostrar liderança no combate à pandemia de Covid-19, defendeu em entrevista à Lusa o diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, ao fazer um balanço da presidência do Conselho da União Europeia que termina esta quinta-feira.

Foi uma oportunidade que Portugal perdeu para mostrar liderança, foi com a corrente“, afirmou Pedro Neto, referindo-se ao levantamento das patentes das vacinas contra a Covid-19, a que a Alemanha se opôs. A vacinação contra a Covid-19, sublinhou, será um dos principais dossiers que transita para a presidência da Eslovénia.

Tal como outras ONG, a Amnistia Internacional (AI) havia pedido à presidência portuguesa que agisse na liderança da Europa no sentido de serem levantadas as patentes das vacinas desenvolvidas por laboratórios privados com forte financiamento público.

“Perante esta emergência da pandemia apelámos para o levantamento das patentes e que a resolução da pandemia fosse posta acima dos interesses económicos e financeiros das farmacêuticas, nomeadamente algumas que estão ligadas à Alemanha e por isso a Alemanha foi contra este levantamento das patentes e Portugal submeteu-se a essa posição e não aderiu a esta ideia, nem trabalhou por ela”, criticou.

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Pedro Neto reforçou que a resolução da pandemia passa por vacinar a população de todos os países do mundo e não apenas os cidadãos europeus. “Porque depois as variantes cá nos chegarão!”, alertou. Neste momento, sublinhou, assiste-se a um agravamento da pandemia, com muitos contágios associados à variante ‘delta’ e à variante delta plus, inicialmente identificadas fora do espaço da União Europeia, na Índia.

Se não é numa perspetiva de solidariedade, que seja numa perspetiva pragmática e já estamos a sofrer com ela, muito porque continuamos a manter os negócios das grandes farmacêuticas, os interesses nacionais de onde estas farmacêuticas estão também baseadas, à frente de uma questão tão grave e urgente como é a saúde pública no que diz respeito à resolução da pandemia”, considerou, ainda no âmbito da vacinação e do levantamento das patentes.

A par da vacinação contra a Covid-19, a próxima presidência europeia herdará, na opinião de Pedro Neto, o dever da Europa no combate à opressão do mundo. “Mais uma vez seguimos uma lógica de submetermos sempre os direitos humanos aos interesses económicos“, lamentou.

Na lista de combates pela defesa dos direitos humanos a que a Europa deve associar-se, o responsável pela AI Portugal incluiu a perseguição ao povo uigure, na China, a violência em Cabo Delgado (Moçambique) e o conflito em Myanmar (antiga Birmânia), palco de um golpe militar há cinco meses.

“Também a Bielorrússia, um exemplo tão recente em que a Europa se pronunciou. Rapidamente os líderes europeus se pronunciaram nas suas redes sociais, mas depois a ação demorou mais tempo a acontecer, as sanções são uma solução que não é tão eficaz quanto isso, enquanto Lukashenko (o Presidente bieorrusso) tiver o apoio da Rússia. E, portanto, são necessárias medidas mais fortes e uma diplomacia mais forte por parte da Europa”, exemplificou, numa referência aos acontecimentos relacionados com a repressão da oposição e a detenção de um jornalista em circunstâncias que levaram à aterragem forçada de um avião, noticiada pela imprensa internacional.

Segundo Pedro Neto, ou as ações da UE se intensificam ou “a própria Europa caminha para a irrelevância como player estratégico” mundial. “Tem de mudar esta sua estratégia de uma diplomacia demasiado tardia ou demasiado frouxa para fazer valer também dos seus valores no resto do mundo”, defendeu.

Lema do semestre português não ficou cumprido

O lema da presidência portuguesa da União Europeia “não ficou cumprido”, porque em tudo o que diz respeito às alterações climáticas a UE “não se impôs”, considerou a Amnistia Internacional Portugal.

Houve uma Cimeira Social, que foi até um dos momentos altos da presidência, que aconteceu no Porto [em maio], que referiu a questão da pobreza, tocando também aqui a questão digital e as alterações climáticas, mas tudo com objetivos a muito longo prazo e sem um plano concreto de ação”, disse Pedro Neto.

Portugal assumiu a 1 de janeiro, pela quarta vez, a presidência europeia, sob o lema “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital”. “Este era um mote que nos entusiasmou, porque tinha em conta a justiça, a justiça social, a questão das alterações climáticas e também a inovação e a modernização em tudo o que diz respeito ao mundo digital, ao que o digital vem facilitar a vida, quer a vida em sociedade, quer a vida pessoal e também em relação às questões relativas a dados pessoais e à proteção da identidade das pessoas”, assumiu o dirigente da Amnistia Internacional (AI).

Infelizmente vamos percebendo que, por vezes, as declarações de intenções são compromissos do momento, que são feitos com entusiasmo, mas se não forem acompanhados de um plano concreto de operacionalização depois ficam por aí e aquilo que vemos são as datas a prolongarem-se”, lamentou.

Passados seis meses, e face às expectativas criadas, fica um “sabor agridoce”, nas palavras de Pedro Neto, que reconheceu ter havido também “alguns pontos positivos” na presidência portuguesa. “Houve questões que foram acontecendo no plano de um desafio enorme que a presidência portuguesa herdou, numa das alturas mais duras desta pandemia a viver-se nos meses de janeiro e fevereiro, também com uma economia de rastos, a população desgastada com esta vaga de Covid-19 na altura a ensombrar toda a Europa”, referiu.

“Aquilo que nos animou perante este cenário foi essa atitude, a recuperação justa, verde, digital, esse entusiasmo que parecia que nos ia dar um semestre com os Direitos Humanos sempre em cima da mesa como tema crítico”, um dos pilares fundamentais da União Europeia, sublinhou o ativista.

Na questão do clima, Pedro Neto destacou que os vários acordos existentes no mundo não estão a responder à urgência que vivem determinadas populações, obrigadas a procurar refúgio em outros países e a enfrentar a fome no seu próprio país.

“Muitos dos novos pobres e dos migrantes também já o são por questões como as alterações climáticas e não vemos aqui nenhuma ação muito concreta e decisiva, nenhum plano de intervenção com datas. Só vemos a data final de quando é para estar cumprido, mas não vemos mais”, declarou.

De acordo com a apreciação que fez da presidência portuguesa, há uma intenção de construir o edifício, mas é necessário “construir passo a passo e definir” um caminho, que não vislumbra.

Entre os pontos positivos do último semestre, Pedro Neto destacou, no plano dos eventos, a celebração dos 10 anos da Convenção de Istambul, com uma conferência de alto nível sobre a violência contra as mulheres na União Europeia, na qual se debateu e refletiu sobre o problema. As celebrações ficaram, no entanto, ensombradas com a saída da Turquia deste compromisso.

“Ao olharmos para o tempo, para estes 10 anos, e mesmo para este semestre, parece que não houve progressos significativos, nem houve a adesão de mais Estados membros à Convenção, o que para nós é muito preocupante, bem pelo contrário, acabou por sair um dos Estados membro”, disse.

No que diz respeito à igualdade de género, Pedro Neto destacou a divulgação de um relatório em que se abordou “de uma forma muito positiva” a necessidade de quotas para impulsionar a igualdade em lugares de decisão nas várias esferas da sociedade e que apresentou uma “percentagem preocupante e que é preciso reverter”. “A liderança [feminina] ainda é feita apenas por 33% na política e 19% nos negócios. É preciso equilibrar estas percentagens para uma maior igualdade”, concluiu.