Título: As “Crianças Caritas” entre a Áustria e Portugal (1947-1958)
Autora: Ana Regina da Silva Pinho
Editores: Afrontamento e CITCEM
Apoio: Câmara Municipal do Porto
Páginas: 554, ilustradas
Preço: 24,50 €

Faz parte da flacidez europeia contemporânea esquecer as suas agruras e tormentos vividos no último século, todavia parte expressiva da sua história. Êxodos africanos, mediterrânicos ou sul-americanos são flagelos no “mundo dos outros”, que nos chegam hoje através do hiper-realismo intenso porém inócuo de televisores 8k ultra hd de última geração, mas suficientemente distantes deste jardim à beira-mar devastado para constituírem incómodo ou comoção maior à hora do jantar ou a qualquer outra. E no entanto também Portugal teve de lidar com a chegada de refugiados austríacos em grande precariedade — crianças subitamente afastadas dos seus pais e avós, ou que os haviam perdido para sempre —, e é essa saga humanitária que a historiadora Ana Regina da Silva Pinho reconstitui neste livro oportuno e cativante, extraído da sua tese de doutoramento apresentada à Universidade do Porto em Junho de 2019. “Numa altura em que as questões ligadas ao acolhimento de cidadãos estrangeiros na Europa […] estão na ordem do dia, […] tal relevância ganha um peso acrescido, principalmente quando os países que outrora foram de envio estão hoje entre aqueles que mais entraves colocam à entrada de cidadãos afectados por iguais ou piores circunstâncias do que aquelas que justificaram a Acção Crianças Caritas, a nível europeu, há mais de 70 anos” (p. 15). “O último acampamento [de refugiados e deslocados] na Alemanha foi fechado em 1957” (p. 62), doze anos depois do fim da guerra.

Não há ainda em Portugal suficiente tradição e prática editorial que force académicos a sínteses dos seus trabalhos de maior fôlego, talvez porque não temos — e nada aponta para que venhamos a ter — um corpo de editores académicos de sólida reputação, formação oficinal e prática consolidada capazes de instituir protocolos de publicação que sejam compatíveis com o tempo livre para leituras por parte de um número alargado de pessoas, deixando versões completas e originais à disposição de colegas de ofício atentos ao crescente património e usufruto de repositórios em-linha ou aos carolas que vão à Biblioteca Nacional. Não se trata de defender uma cultura baseada em digest reading, nada disso, mas de ver como ajustar a publicação de livros de interesse ou curiosidade histórica evidente — e este é, claramente, um deles — a práticas de leitura recorrente quotidiana, actos silenciosos e maravilhosos de civilização e de pertença, para que livros de lombada larga não sejam postos de lado simplesmente porque o encargo de lê-los se afigure “além da conta”, havendo sempre muitos outros por onde escolher ou que preferir. Para o editor comum, desde que garantido patrocínio ou protocolo institucional que cubra custos industriais, imprimir 600 ou 300 páginas pode significar o mesmo, todavia o tempo de leitura hoje reservado pela vida moderna é tão limitado que livros como este de Maria Regina da Silva Pinho exigem a quem os queira ler, não uma sã curiosidade tranversal mas um interesse específico, ou até muito específico, cujo censo curto não é difícil calcular. E se digo tudo isto é porque considero que o trabalho de Silva Pinho merece as nossas boas atenções enquanto descortinar duma realidade humanitária que nos disse directamente respeito, e para que o trabalho dela não se esfume no tempo.

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Este livro tem precedente nobre na pesquisa que a vienense Christine Maisel-Schulz (1940-) — ela própria uma criança refugiada — fez em 2010 em arquivos institucionais de todo o tipo sobre o que sucedera na sua terra natal e em Espanha, seu país de acolhimento, recolhendo também depoimentos escritos de ainda sobreviventes que partilharam com ela essa longínqua experiência precoce. Silva Pinho preferiu acrescentar, para o caso português, o contributo da história oral admitido e consagrado pela Sociologia, abordando refugiados, organização logística e famílias de acolhimento, pese embora a evidente dificuldade de encontrar hoje quem ainda possa depor sobre eventos ocorridos sete décadas atrás.

“Quase dois anos após o final da guerra, o problema fundamental de fornecimento de alimentos ainda não fora resolvido e, à excepção da Suíça e da Suécia, a escassez de alimentos era ainda geral” (p. 66). “Na primavera de 1947 a Europa estava à beira do abismo” (p. 67). O Plano Marshall (1948-52) foi remédio providencial porém de efeito não tão instantâneo que evitasse a necessidade de soluções de recurso por parte duma Áustria com “metade do seu espaço habitável destruído” e “destruição das áreas cultivadas” (p. 76), seccionada a bico de faca desde 1945 por “zonas de ocupação” concedidas aos exércitos soviético, francês, e britânico e norte-americano, com a capital Viena a ser administrada pela coligação vencedora, com predomínio russo e não da melhor maneira. “A população austríaca estava aterrorizada pelos libertadores”, principalmente “pela violência sexual exercida pelos soviéticos contra as mulheres” (p. 77). A fome já grassava antes que 1947, ajudado por um inverno mais rigoroso, ficasse conhecido como o ano dela e mais de metade da população de Salzburgo dependesse de alimentação fornecida directamente pelos americanos: “em Abril de 1945, o fornecimento da população tinha colapsado por completo” (p. 76); “em Viena várias organizações tomariam a seu cargo a alimentação dos mais pequenos de forma continuada”; “a UNICEF alimentava diariamente 420 mil crianças” (p. 79).

A protecção de crianças em cenário de guerra e depois dela tinha evoluído desde 1914-18, tornando-as “objecto das relações internacionais” (p. 98) e foco e razão de ser de organizações de todo o tipo e origem que haveriam de “converter a filantropia nacional num novo campo de actividade profissional”, mesmo quando sujeita a “instrumentalização política e/ou económica por parte dos Governos” (p. 96) ou a preferências de natureza religiosa de ajudante para ajudado, ou até por estreita vizinhança. Deslocação temporária de crianças de áreas urbanas para rurais, consideradas seguras, para asilos estatais ou castelos vazios cedidos pelo clero ou pela aristocracia, até mesmo internamento sazonal em sanatórios, quando justificado, era prática comum há muito instituída no velho império austro-húngaro e não só, mas ganharia novas formas — e alcance geográfico muito maior — no segundo conflito mundial, desde logo com milhares de crianças judias alemãs e polacas, já órfãs ou com os pais enfiados em campos de concentração (quase o mesmo) levadas para o Reino Unido em 1938-39, depois também para Holanda, Dinamarca e Suécia e por fim para os longínquos Estados Unidos da América, onde de 1934 a 1945 desembarcaram c. 1400 menores não acompanhados (p. 101), postos a salvo, é certo, mas também de frente para a incerteza de custódias e adopções.

Na Europa é que houve de tudo um pouco, desde organizações clandestinas, como a suíça Rede Garel, praticando “resistência humanitária” às escondidas da cruel Gestapo, até instituições religiosas — que no seu todo garantiriam 90 % da ajuda humanitária no imediato pós-guerra, 1945-53 —, algumas das quais, sabe-se, foram capazes de mentir aos pequenos “sobre a morte dos pais, tentando apropriar-se deles e destiná-los ao sacerdócio” (p. 103). Entre 1947 e 1958, mais de 36 mil crianças austríacas viajaram nestas circunstâncias para outros países. Portugal foi o terceiro que mais as recebeu — 5632, um pouco mais de metade das 9948 da Bélgica e das 9799 da Holanda, países que haviam sido ocupados —, das quais 1989 em 1949, depois de muito modestas 121 crianças no primeiro ano (p. 148). Entre todas estas, a larga predominância feminina foi sempre evidente. A “subnutrição muito forte” era factor elegível…

Pela sua neutralidade oficial e posição geoestratégica privilegiada, o nosso país acumulara um histórico muito expressivo (por vezes nada oficioso…) de acolhimento de estrangeiros em busca de abrigo ou de passagem segura para melhores paragens transatlânticas. Depois de 1945, tratava-se de proporcionar longos períodos de férias, ditos “de recuperação”, a crianças de países que haviam sido duramente afectados pela guerra. Fernanda Ivens Ferraz Jardim (1912-99), condessa de Valenças e secretária da Cruz Vermelha, pretendeu de início que a instituição — como haviam feito congéneres suas (p. 147) — correspondesse a apelo directo do papa Pio XII nesse sentido, mas oposição ideológica interna lançou-a para a fundação da União de Caridade Portuguesa em 1946, de que ela seria a figura principal por duas décadas, em luta nada fácil por um estatuto jurídico que facilitasse ao máximo a missão humanitária a que se propunha: o das Caritas Diocesanas que hoje conhecemos.

A maioria das crianças acolhidas em Portugal nasceu entre 1936 e 1944 (p. 169), o que nos dá a medida de como eram ou podiam ser pequenas. Pais ou tutores eram obrigados a assinar um compromisso com a Caritas Viena que, entre outras coisas, estipulava que em caso de morte não haveria lugar a trasladação paga pela instituição e que esta jamais poderia ser responsabilizada por qualquer acidente em viagem ou no país de acolhimento (p. 172). A ausência de relações diplomáticas entre os dois países, apenas retomadas em 1953, nada facilitava, a organização dos transportes — ferroviário, naval e aéreo (bastante menos) — afigurava-se tarefa árdua, ainda que partilhada, e a alimentação das crianças nas viagens de comboio, em terceira classe (p. 200), um quadro de precaridades logísticas e de solidariedade local, quando uma simples sopa quente podia ser elevada a “um manjar dos deuses” (p. 181). Em 1949, Waltraud Hoffinger, de 8 anos, viajou com papel de jornal para lhe servir de cama no chão e “passas de uva na bagagem” (p. 193). No mar, onde a resistência a enjoos era mínima ou nula, a viagem até ao “país das delícias” foi para muitos um suplício infernal, que golfinhos avistados não faziam esquecer. A chegada a Lisboa tinha, em contrapartida, a face inversa: Aurelia Hayer, de 11 anos, lembrou em depoimento que “quando entrámos no porto, vieram ao nosso encontro muitos, muitos barquinhos enfeitados com flores. Era impressionante. Eu estava encostada à amurada do navio e não me saciava de olhar e de admirar a alegria com que éramos saudados. […] Essa recepção cordial e efusiva não deixou que surgisse em nós qualquer saudade de casa” (p. 202), o que percebe pela reportagem fotográfica de O Século à chegada dum navio a 18 de Junho de 1949 (v. p. 204).

Alguma atenção mediática — e a rede da Igreja Católica, incluindo a imprensa diocesana — parecem ter servido de chamariz para a adesão de acolhimento a estes pequenos austríacos, mostrando não haver à partida uma família de acolhimento garantida para cada um deles, seja em Lisboa, seja nos variadíssimos pontos do país continental para os quais muitos deles seriam levados, de comboio, carro ou camião. A escolha era feita, demasiadas vezes, com base na subjectividade ou na empatia do primeiro momento. “Quero este, que é o mais enfezado”, terá dito um Infante da Câmara, de Vale de Figueira, Santarém (p. 342). Quem não fosse adoptado, rapazes quase todos, permaneceria em paços episcopais, conventos ou residências paroquiais (o Patriarcado acolheu 604; tab. 5, p. 225), que também serviram de alojamento em trânsito, além de conhecidas colónias balneares, como a do Século, em São Pedro do Estoril, a da Afurada, e ainda outras, da FNAT. Situação houve em que pernoitaram na Cordoaria Nacional, “por especial deferência do Ministério da Marinha” (p. 250), antes de embarcarem no cais de Alcântara de volta à Áustria, pelo porto de Génova. Laços afectuosos foram criados, apesar das notórias barreiras línguísticas, e muitos “pais adoptivos” do Norte deslocaram-se de automóvel a Lisboa (enquanto as crianças viajavam de comboio com pessoal da Caritas e eclesiásticos) para uma última despedida. Quase uma centena de austríacos voltariam em anos seguintes, a custas dos portugueses que antes os haviam acolhido, como sucedeu à jovem Ilse, fotografada na praia da Parede em Julho de 1953 (foto, p. 430). Outras vezes, foram famílias portuguesas que se deslocariam a Áustria em visita.

Ana Maria da Silva Pinto carreou toda a informação que pôde recolher, para dar um retrato muito alargado das diferentes situações e percepções — também sensoriais — do que foram os diferentes turnos de crianças refugiadas austríacas e de outras nacionalidades que com elas viajaram com passaporte colectivo, polacas e húngaras, por exemplo, estas últimas com experiência directa da resistência à invasão soviética nas trincheiras de Bucareste. Todavia, parece ter dado menos atenção do que deveria ao que chamaríamos “sociologia do acolhimento”, traçando e analisando o perfil das famílias que quiseram seguir o apelo papal ou do pároco da sua igreja e se disponibilizaram para receber em suas casas menores estrangeiros de cultura bem diferenciada da nossa e em condições pessoais bastante difíceis de antecipar, famílias às quais a Caritas Portuguesa — onde estavam integradas supervisoras austríacas — não dera “nenhum tipo de preparação para o acolhimento” (p. 293). “O bem-estar material da família nem sempre foi sinónimo de bem-estar emocional para as crianças” (p. 300), “o ambiente luxuoso não se sobrepunha ao ambiente cristão” (p. 317), e visitas de avaliação eram esporádicas e superficiais — como episódios narrados denunciam —, pois “pais de acolhimento não chegavam sequer a ter a noção dos problemas enfrentados pelas crianças acolhidas” (p. 307), como solidão familiar ou traumatismos psíquicos criados por stress de explosões e disparos, até de fuzilamentos conhecidos (p. 310), em quem subitamente se viu num “mundo cinzento repleto de escombros, apenas rico em escassez e privações” (p. 203). “Pedidos de devolução” (sic) denunciam incapacidade de entender o outro além da norma ou do preconceito vigentes, “crueldade moral para com a criança” (p. 315), “física” (em Penafiel, p. 317) e até “obrigatoriedade de trabalhar”. Por si só, uma dieta de peixe, por lhes ser desconhecida, expunha diferenças substanciais que criavam pequenos atritos difíceis de antecipar e prevenir. Predomínio do francês sobre o alemão criava dificuldades de comunicação adicionais com crianças ainda sem idade escolar capaz de as aproximar a outros. Apesar disso, um cuidado generalizado em dar aos pequenos austríacos uma alimentação saudável e restabelecedora de forças e peso físico, com “refeições regulares, quatro vezes por dia!” (Alois Sablatnig em 2017, p. 368) parece indesmentível, ou que a noite de Natal, com a indispensável árvore e os presentes, se tornasse uma memória perene para eles, ou que no Carnaval as meninas se divertissem vestidas de varinas ou minhotas (Ilse e Hannelore, foto p. 388), ou algumas idas à praia, desafiando o mar, ou a touradas, na raia luso-espanhola… Com o seu muito extenso trabalho de campo todo balançado em depoimentos vívidos dos refugiados ainda sobreviventes, velhos relatos escritos, imprensa católica e documentação de arquivos institucionais, Ana Silva Pinho dedica ainda alguma atenção ao regresso a casa, a algum prolongamento de estadias por mútuo acordo parental, mas sobretudo à complicada despedida das crianças de quem se lhes devotara tanto — “momento especialmente angustiante” (p. 408) — ante a expectativa de reenvio a cenários de crueldade, numa terra natal ainda ocupada no pós-guerra devastador. Para os pais e irmãos adoptivos, sequer a separação poderia ser fácil pelos laços afectivos criados. O poeta João de Araújo Correia (1899-1985), que no Douro acolheu a bela Hannelore Martinovsky, dedicou-lhe uns versos: “Se tu eras a andorinha, que me trazia enlevado, | De manhã à noitinha, no beiral do meu telhado, | digo-te adeus com o lenço… | […] ficou-te o ninho suspenso” (cit., p. 416).

São temas evidentes para aqueles anos, todavia a percepção fina do que seria (ou não seria) um impulso humanitário congénito português, capaz de se desdobrar instintivamente diante de quaisquer catástrofes humanitárias necessitando de aplicado socorro individual e comunitário, não motivou a autora, embora o período durante o qual pesquisou e escreveu lhe pudesse ter sugerido uma abordagem deste tipo. Conversar e debater com interlocutores dessa história de há 70 anos eventuais paralelismos com as realidades actuais parece manifestamente curto, e pouco atento à complexificação dos problemas criados pelo impacto de massivas migrações forçadas, empurradas pelo desespero de uns, e para negócio de outros, e sem bálsamos de qualquer tipo e sem hipótese de verdadeiros regressos a casa…