Título: Civilizações
Autor: Laurent Binet
Editora: Quetzal
Páginas: 424
Preço: 19,90

Chegou agora a Portugal Civilizações, romance de Laurent Binet, que já escrevera A Sétima Função da Linguagem (publicado pela Quetzal em 2017) e HhhH (Prémio Goncourt para primeiro romance, publicado pela Sextante, também em 2017). Neste exercício magnífico, o autor francês reescreve a história do mundo. Sendo uma tarefa que não raras vezes cabe à História, o escritor propôs-se a alterar detalhes e condicionar – alterar – a evolução da humanidade. Ao fazê-lo, foi fiel aos maneirismos da época, adotando a escrita como quem esculpe um músculo, e mostrou que um pormenor – uma morte na hora errada, uma interpretação diferente, um rasgo de sorte – pode condicionar a vida de um povo de um país.

Aqui, fez uma proposta do que poderia ter acontecido se os índios tivessem cavalos, ferro e anti-corpos às doenças europeias à chegada dos “conquistadores”. Com estas três armas, a história alterou-se radicamente, e até vimos Colombo e os seus homens a sucumbirem sem glória, feitos anónimos, longe, nas mãos de outros. O seu relato quase se torna piedoso, ao vermos a facilidade com que se foi de conquistador a vítima:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Estou tão infeliz como digo. Chorei hoje mais do que nunca: que o céu agora me receba em misericórdia e que a terra chore sobre mim. (…) vim aqui, às Índias, da maneira que disse. Isolado na minha dor, doente, esperando a morte a cada dia, rodeado por um milhão de selvagens cheios de crueldade e que são nossos inimigos, estou tão longe dos santos sacramentos da Santa Igreja que a minha alma será esquecida se tiver de se separar aqui do meu corpo. Que chore sobre mim quem for imbuído de caridade, de verdade e de justiça. Não fiz esta viagem para ganhar com ela honra e fortuna; é a verdade, pois quanto a isso já toda a esperança morreu em mim.” (p. 74)

Com isto, ensaia-se a hipótese de o mundo ter sido outra coisa, num exercício que facilita a assunção do lugar do outro. Aliás, se a literatura é essa busca do outro, a possibilidade de estar noutras cabeças, de ser outras cabeças, atinge outra dimensão com este romance, já que deixa o leitor no seu lugar ao mesmo tempo que é o antagónico. Assim, não passa a poder assumir o lugar do outro em termos da sua individualidade; fá-lo em termos de contexto histórico, assumindo a sua condição. De colonizador a colonizado vai apenas um exercício ficcional de distância. E, assim, Binet cogita o inverso, munindo-se de um conhecimento da História impressionante e de uma capacidade de narrar cheia de recursos, numa prosa limada que vai ao osso da História, mostrando como da eternidade histórica, da imagem mítica de um herói, ao mais absoluto anonimato vai apenas a decisão tomada num determinado momento por quem tem poder ou desespero.

Com este romance, Laurent Binet conseguiu misturar aventura e utopia, realismo e efabulação, verdade e teoria, e fê-lo ao estilo de saga, passando pelos diários de bordo, onde o leitor se reconhece e estranha em simultâneo. Assim, apresentou-nos um relato virtuoso da História do mundo: não foi, mas podia ter sido.