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White Stripes: 20 anos de "White Blood Cells" ou o início de mais um fim do rock

Este artigo tem mais de 2 anos

No início de julho de 2001, "White Blood Cells" não era o primeiro álbum da dupla americana. Nem sequer o segundo. Mas era o início de um revivalismo fundamental. Ou será que acabou ali mesmo?

Photo of Jack WHITE and Meg WHITE and WHITE STRIPES
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Meg White e Jack White, a dupla de irmãos, amantes, companheiros de garagem que pegou nos blues e os levou para o topo das tabelas de vendas

Redferns

Meg White e Jack White, a dupla de irmãos, amantes, companheiros de garagem que pegou nos blues e os levou para o topo das tabelas de vendas

Redferns

No verão de 2016 um grupo de norte-irlandeses – com um interesse muito específico em música – tornou-se conhecido por ingerir quantidades industriais de cerveja enquanto cantava pelas ruas de França uma canção cujo refrão era:

“Will Grigg’s on fire
Your defence is terrified”

Graças às redes sociais, em breve o refrão seria cantado por milhões de pessoas, uma boa parte das quais não faziam ideia quem era Will Grigg. Para um olhar menos atento, aquela comunidade de beberrões alegres havia composto, do nada, um êxito pop. Uma observação mais atenta, apenas ao alcance das mais tremendas mentes, revelava que “Will Grigg’s on fire” (como a canção veio a ficar conhecida) era, na realidade, uma versão de “Freed from Desire”, da cantora italiana Gala.

Não é claro se os norte-irlandeses apreciavam “Freed from Desire” de forma genuína ou ironicamente – bem como não é claro se apreciavam Will Grigg genuína ou ironicamente. Grigg era (é) um avançado norte-irlandês de (digamos) medianas capacidades; uns meses antes do Euro 2016 (que Portugal viria a vencer), numa atitude inusitada na sua carreira, marcara alguns golos em jogos consecutivos pelo seu clube (à época o Wigan, do Championship, a 2ª divisão inglesa), o que levou um adepto norte-irlandês a criar a versão em que “Will Grigg’s on fire / Your defence is terrified”.

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A capa de "White Blood Cells", o terceiro álbum dos White Stripes, editado a 3 de julho de 2001

Talvez nesse momento não houvesse ironia à mistura no uso da versão, mas quando chegou o Euro havia certamente, tendo em conta que Grigg nem titular era da Irlanda do Norte. Cantar “Will Grigg’s on fire / Your defence is terrified” era um ato de auto-depreciação dos norte-irlandeses, que sabiam que ninguém temia Will Grigg e estavam felizes por simplesmente estar no Euro, em França e com cerveja na mão.

Naquele verão, toda a gente adorou a versão, que fez honras de abertura de telejornal por toda a parte – exceto Will Grigg, que não achou graça nenhuma. Talvez haja aqui alguma lição sobre a complexidade do ser humano mas honestamente, se houver, descubram-na sozinhos, que não me pagam para tanto.

O que me interessa nesta história é apenas isto: se uma canção é cantada por adeptos de futebol num estádio durante um jogo, então de alguma forma essa canção marcou a cultura popular. De Frank Sinatra aos James passando pelos Pet Shop Boys, as claques de futebol têm adaptado canções alterando a letra de modo a relacionar a canção com o seu clube ou seleção ou jogador favorito, no que é um dos exercícios mais fáceis que alguma vez o ser humano colocou a si próprio. Essas canções têm apenas uma característica em comum: são populares.

[“Dead Leaves and the Dirty Ground” ao vivo no Saturday Night Live em 2001:]

Talvez não se possa dizer que “Freed from Desire” constitua um pináculo da criação humana – mas não se pode fingir que durante algum tempo o Eurodance (o género musical que lhe deu origem) não fez parte da dieta radiofónica e noctívaga dos ocidentais. Em 2016, por razões difíceis de compreender, houve um revival de Eurodance – talvez tenha sido por aí que a versão tenha surgido.

Ninguém está livre de ver uma canção sua adaptada por uma claque de futebol, mas há candidatos menos óbvios que outros – e entre os candidatos menos óbvios incluía-se, no início do século XXI, um duo de guitarra e bateria, constituído por não se sabia bem se um irmão e uma irmão ou um marido e uma esposa ou dois amigos, de casacos vermelhos e brancos de ripas, que disparavam riffs a uma velocidade estonteante (ou pelo menos mais rápida que o tempo que Will Grigg demora a marcar um golo).

No Euro 2004, essa dupla seria cantada em todos os estádios de futebol por todas as seleções, o riff de “Seven nation army” (primeiro tema de Elephant, de 2003) transformado num tan tan tan tan tan tan universalmente reconhecido, sinal de que haviam sido adotados pela cultura mainstream; mas em 2001 ninguém fazia a mínima ideia quem eram os White Stripes, nem quando, a 3 de julho lançaram White Blood Cells, o seu terceiro disco que a maior parte da humanidade que o escutou pensava ser o primeiro; dois anos depois aconteceria o mesmo com Elephant.

[“Hotel Yorba” ao vivo no programa “Later… With Jools Holland” em 2001:]

Não vem mal ao mundo que ninguém conhecesse os White Stripes em 2001 – também ninguém conhecia os Strokes (que só tinham ainda um EP e só lançariam o disco de estreia em outubro desse ano), ninguém conhecia os Rapture (ainda que “House of jealous lovers” já incendiasse as pistas mais sofisticadas e devassas), ninguém conhecia os Yeah Yeah Yeahs, que ainda demorariam uns anos a editar, e (se quisermos ir para o indie rock) ninguém conhecia os National ou os Arcade Fire (que ainda não haviam editado).

Em suma: o rock, para toda uma geração, ainda não existia. Existia o rock de antigamente, que pertencia ao cânone e até podia ser muito bom, mas não era da geração que tinha entre 18 e 30 anos, era dos mais velhos. Era como se alguém, no longo streaming do rock, tivesse clickado no pause; até que chegou (consoante os gostos de cada) Is This It (a estreia dos Strokes) ou White Blood Cells, o primeiro grande disco dos White Stripes.

Os americanos inventaram um termo para objetos assim: “game changer”, ou seja, algo que de repente muda a forma da indústria atuar, ou a forma de consumirmos cultura — ou altera mesmo a própria cultura. Sendo os americanos um povo que ainda não saiu dos cueiros, é natural que encontrem momentos históricos debaixo de cada pedra – pelo que devemos sempre guardar um certo distanciamento perante o tipo de eventos (culturais ou não) apelidados de “game changer”.

Mas é verdade que o rock havia sido atirado para debaixo do tapete, esquecido entre as ervas daninhas no quintal, posto à venda numa feira da ladra, recambiado de volta como um cão devolvido ao canil porque não fica bem no feng-shui da sala. Houve os Nirvana e depois dos Nirvana os imitadores dos Nirvana e depois o mundo cansou-se. Britney Spears e as Destiny’s Child tomaram conta das tabelas de vendas no final da década de 90, assinalando uma mudança geracional: as pessoas nascidas na década de 70 estavam agora a terminar os seus cursos e à procura do primeiro emprego, uma nova geração de adolescentes (talvez menos revoltados) precisava de música pop.

[“Fell in Love with a Girl” ao vivo no programa de David Letterman em 2001:]

O rock ficou remetido na gaveta bafienta do indie-rock – onde produziu ótimos resultados, cortesia dos Pavement e dos Stereolab, entre muitos outros. O hip-hop ascendeu; houve Bristol, o revivalismo da soul, uma breve ascensão da world music (antes de ser remetida de novo ao silêncio), aquele período em que oscilámos entre o Big Beat francês e a eletrónica de sofá de Kruder & Dorfmeister, mas nunca mais se ouviu um riff decente, um berro urgente numa rádio com aspirações comerciais.

Enquanto coisa suja, suada, sexual, o rock simplesmente deixou de existir, sendo substituído pela obesidade mórbida do nu-metal ou pelo punk lipo-aspirado dos Green Days desta vida. Ninguém apanhou gonorreia ao som disto, ninguém foi posto fora de casa pelos pais ao som disto. É um momento na história do mundo de que todos nos devemos envergonhar (em particular as calças largas a cair pelo rabo).

E é neste cenário que entra White Blood Cells com o magnífico riff de abertura de “Dead leaves and the dirty ground” a respirar whiskey marado e margens do delta – algo de sujo, primordial, inacabado, mas possuído por uma energia contagiante. White Blood Cells não inventou nada – há décadas que o rock roubava riffs do blues e lhe adicionava o ritmo certo para o tornar sexual – mas soube retirar apenas o estritamente necessário do passado para usar no presente com a urgência de quem tem de escavacar um casino ou partir um quarto de hotel ou fazer tri-gémeos nos próximos três minutos e meio.

É quase um disco imaculado e logo ao segundo tema, “Hotel Yorba”, estamos a bater o pé com aquele refrão infeccioso a bambolear as ancas na exata linha que une e separa ferrugem e sensualidade, sífilis e sofisticação. À quarta canção, “Fell in love with a girl”, estávamos em território punk e – note-se – já havíamos passado por folk-rock, blues-rock, garage-rock e punk, tudo variações da mesma fonte primordial (os blues).

[ouça “White Blood Cells” na íntegra através do YouTube:]

À música adicionava-se o mistério: não era exatamente claro quem aquelas pessoas eram (se eram amigos, irmãos, namorados), o estranho combo (bateria e guitarra, sem baixo), as roupas saídas de um western – era possível que se tratasse de um par de bimbos nascidos num apeadeiro do delta do Mississipi ou seres iluminados pelo deus do riff, enviados à Terra para nos salvar.

Fossem quem fossem não era mais possível não olhar para eles, não sentir um frémito a descer-nos a espinha à medida que abriram a comportam e geravam eletricidade; escassos meses depois os Strokes surgiam, o que (juntamente com as guitarras dançáveis dos Rapture) constituiu um Acontecimento. De súbito, o rock existia e brincava a Lázaro nas tabelas de vendas.

Não é certo que depois dessa geração (que inclui, apesar de todas as diferenças estéticas, os LCD Soundsystem e os Walkmen e aqueles betinhos que imitavam Paul Simon nos discos em que Paul Simon imitava música africana) o rock alguma vez mais tenha sido simultaneamente inovador e comercial. Mas, por um breve período, como um girassol ao início do dia, reergueu-se e deu-nos um último sopro de vida antes de dar de novo à tumba da qual parece ainda não ter saído.

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