As Doce nasceram em finais de 1979, pela mão de Tozé Brito e Cláudio Condé, para a Polygram, vindas das desaparecidas Cocktail e dos extintos Gemini (só Laura Diogo não estava ligada ao meio do espectáculo). Dois anos antes, Portugal havia recebido o FMI pela primeira vez, devido ao estado em que os desmandos revolucionários pós-25 de Abril tinham deixado a economia, e embora mais calma que no PREC, a situação política ainda estava complicada. A Aliança Democrática ia ganhar as eleições legislativas intercalares de dezembro, mas o Conselho da Revolução continuava a condicionar a vida democrática do país, a esquerda totalitária continuava assanhada e as FP 25 de Abril estavam a começar a sua senda de assaltos e atentados bombistas. E ainda não havia televisão a cores.

A década de 80 iria ver outra revolução, esta na música ligeira e pop/rock, também em parte uma resposta à saturação das pessoas com a música de protesto e de intervenção que havia dominado as rádios. Já não havia paciência para o trator da cooperativa, nem para dar poder à malta. E as Doce, formadas por Laura Diogo, Lena Coelho, Fátima Padinha e Teresa Miguel, todas bonitas, elegantes e “sexy”, tiveram uma participação destacada no “boom” musical dos anos 80. Foram uma das primeiras bandas femininas europeias, tinham canções dançáveis e que se aninhavam logo no ouvido, coreografias cuidadas, uma imagem muito própria, criada pelo costureiro José Carlos, feita de sofisticação, atrevimento e muita, muita sensualidade, e eram promovidas intensamente pela editora.

[Veja o “trailer” de “Bem Bom”:]

O filme “Bem Bom”, de Patrícia Sequeira (a autora do infelicíssimo “Snu”), que será também uma série de televisão, quer recriar e explicar o fenómeno Doce, evocando paralelamente esse Portugal dos anos 80 em que o quarteto surgiu, fez sensação e prosperou. E pelo menos nesta montagem para cinema, é mais eficaz e convincente no primeiro aspeto do que no segundo, mesmo que por vezes de forma demasiadamente esquemática. Por exemplo, o ódio que as feministas e alguma esquerda jornalística e intelectual votavam às Doce é apenas referido de passagem, e o impacto que o grupo tinha no público, em especial na província, fica muito aquém do que é mostrado.

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Um percurso “Doce” e “bem bom”: as histórias e os bastidores da girl band que parava o país

A limitação de meios compromete, por seu lado, as sequências musicais de “Bem Bom” (são as atrizes que cantam, sem “playback”), todas muito semelhantes, sobretudo as que se passam nos vários Festivais da Canção a que as Doce concorreram, que tinham um ambiente muito próprio e especial, e aqui são reduzidos ao grupo num palco indistinto a atuar para uma plateia obscurecida. Melhor, muito melhor estão as atrizes — Bárbara Branco (Fátima), Lia Carvalho (Teresa Miguel), Ana Marta Ferreira (Laura Diogo) e Carolina Carvalho (Lena Coelho). Têm papéis bem escritos e diálogos vivos, encaixam todas perfeitamente nas respetivas personagens e conseguem individualizá-las, passam-nos os seus feitios e personalidades, os modos de estar, as tensões, o entusiasmo e o espírito de união, as fricções com os seus mentores e os custos do sucesso nas suas vidas pessoais (pontos também para o trabalho de direção artística e de guarda-roupa).

[Veja entrevistas com a realizadora e as atrizes:]

É graças a elas que “Bem Bom” é capaz de evocar o que significaram as Doce nesse Portugal de há 40 anos, ainda cheio de tiques pós-revolucionários, mas desejoso de se integrar na Europa democrática e liberal, e sequioso de novidade em todos os aspetos, sobretudo musicalmente e em termos de originalidade, sentido de espectáculo e também de uma intensa vibração feminina que combinava frescura, desinibição e erotismo. Embora o filme exagere, e de forma caricatural (a sequência em que a secretária desengraçada e atadinha da Polygram impede, com o seu testemunho, que o grupo se desfaça), o papel das Doce na mudança da mentalidade coletiva nacional, e sobretudo na vida e no modo de ser das mulheres portuguesas.

Os bastidores e as primeiras imagens: estivemos na rodagem do filme das Doce

Mesmo assim, mil vezes Fá, Teresa, Laura e Lena como boa influência social e comportamental, do que as feministas desenxabidas, recalcadas e invejosas que se lhes referiram na imprensa como estando abaixo de prostitutas de rua, após terem interpretado “Ali Bábá” em reluzentes e sugestivos trajes das Arábias hollywoodescas no Festival da Canção de 1981. Já ninguém se lembra delas hoje, enquanto que das Doce, das suas canções, da sua presença e do seu fulgor, guardamos as melhores, mais afetuosas e animadas recordações. E que, com maior ou menor felicidade, “Bem Bom” nos consegue devolver.