A dada altura, há uma personagem de “The White Lotus” que se confronta com a sua própria normalidade. Numa sociedade em galopante infeção de perfeccionismo, ela (Rachel, Alessandra Daddario) casou com o tipo rico e bem-parecido que a exibe como a um troféu. E ela, que quer provar a si mesma que é mais do que isso, manter a carreira no jornalismo e mudar qualquer coisa no mundo, começa a suspeitar da sua própria capacidade para o fazer. Não é excelente, é apenas boa. Exatamente como “The White Lotus”, em geral. Exatamente como Mike White, o autor.
Porque soa isto a uma crítica cruel? A culpa não é de Mike; é do mundo que Mike retrata: este, nosso, aqui, agora. É que não há hoje pecado mais grave do que ser-se bom. É que o mau pode sempre dar a ideia de que é mau porque quer ou porque nem sequer está interessado em tentar. O bom é o que tentou – e não conseguiu. Nada gera pior reputação. E nada é agora mais importante do que a reputação. Ser bom, em 2021, é extremamente parecido com ser um fracasso. Leram aqui primeiro.
A nova minissérie da HBO (estreia-se esta segunda-feira, 12 de julho) acontece integralmente num resort de luxo no Hawai. Chegamos e partimos com um conjunto de veraneantes que vai gerar o típico choque destas circunstâncias: de um lado, o turista que pagou por umas férias de sonho e acha que tem direito a tudo; do outro, o funcionário pago para ser perfeito e que tem dentro uma bomba-relógio prestes a explodir: a sua dignidade. É a luta de classes óbvia entre o manda-quem-pode e o obedece-quem-deve, agravada pelo detalhe sádico de ter de estar sempre a sorrir.
[o trailer de “The White Lotus”:]
Armond (Murray Bartlett) é o gerente e pessoa não-oficialmente encarregada de fazer feliz uma turba de gente que já nem sequer sabe o que a faz feliz: um pai que acha que ninguém o respeita e teme ter um cancro nos testículos; uma alcoólica que passeia as cinzas da mãe; duas adolescentes muito woke e muito entediadas viciadas em comprimidos; um irmão que não vê vida para além dos jogos e da pornografia; um menino da mamã incapaz de entender a noiva; uma mulher de sucesso e equilibrada escrava do seu sucesso e equilíbrio. É no Hawai, mas, mais do que o mar, estamos rodeados de cínicos. No meio disto, uma espécie de whodunnit ou, pelo menos, um who-they-did-it-to, lançado como isco na cena de abertura: alguém vai morrer naquele hotel e só sabemos que não será aquele que mais nos apeteceria matar.
Ditam as leis do argumento que as histórias podem ser muito boas, mas que é pelas personagens que as pessoas voltam. É preciso que o espectador goste delas, se interesse por elas, torça por elas. É por isso que o sarcasmo dá excelentes cartoons e oneliners e muito poucas grandes séries ou romances. “The White Lotus” aguenta-se perigosamente neste fino equilíbrio, mas aguenta: tem do seu lado a duração razoavelmente curta (6 episódios), a inteligência de plantar aquela ligeira curiosidade pelo mistério inicial e, mais importante do que isso, lá vai conseguindo, aos poucos, descascar a pele a duas ou três daquelas personagens odiosas para lhes mostrar a humanidade de que precisamos para nos relacionar.
É um território que lembra Paolo Sorrentino: a lua-de-mel que tem de ser perfeita, a família que tem de ser perfeita, o hotel que tem de ser perfeito – se já não para nós, pelo menos aos olhos dos outros – e a obsessão com tudo isto, alimentada a dinheiro, plásticas e materialismo, deformada até ao grotesco. Debaixo, todavia lateja uma ânsia pela redescoberta da pureza. Pelo regresso à verdade do macaco. A natureza, aqui corporizado pelo Hawai, imaculada, anterior a todos os nossos crimes, construções, sistemas e preconceitos que se aceleraram e armadilharam ao ponto da loucura. Antes que detonem e nós com eles, aqui estamos, numa prancha para a salvação.
“The White Lotus” é, provavelmente, o ponto mais alto da carreira de Mike White, o nome que vemos matraqueado até à náusea nos créditos de abertura (autoria da série, escrita do episódio, produção e realização), com o requinte involuntário (?) de ecoar ainda no título da série. Em tempos, a jovem promessa que escreveu “A Escola do Rock”, companheiro de estrada de Miguel Arteta ou Jack Black, White já chegou entretanto aos 50 sem que voltasse a fazer coisa mais memorável do que esse guião para o filme de Richard Linklater nos idos de 2003 (ainda dois terços dos estereótipos caricaturados em “The White Lotus” não existiam).
Não chega para ser excelente porque White não gosta suficientemente das suas personagens. Abandona quase todas a um desenlace superficial, quando não se esquece, pura e simplesmente, de algumas linhas de história (aonde foi parar a funcionária grávida que está no centro do primeiro episódio?). À parte isso, mais uns anos de realização hão-de lhe ensinar a evitar os planos escatológicos. Afinal, obrigar o espectador a desviar o olhar do ecrã deveria ser o último objetivo dum contador de histórias para o ecrã.
Se vale a pena ver “The White Lotus”? Vale, desde que lhe perdoe o crime de não ser genial, imperdível, a última bolacha do pacote, essas coisas que agora tudo e todos dão a vida para ser.