Título: Quinta de Santa Eufémia. Vinhos com história
Autor: Gaspar Martins Pereira
Fotografia: Alzira Castro e outros
Versão inglesa: Lígia Bernardino
Editores: Quinta de Santa Eufémia e Afrontamento
Páginas: 195, ilustradas, hard-cover com caixa
Preço: 42 €

Edição bilingue e com o aparato gráfico típico dos livros feitos para coleccionadores, este álbum apresenta-nos o estudo histórico da Quinta de Santa Eufémia, em Parada do Bispo, distrito de Lamego, a cargo de um dos mais profícuos historiadores do vinho do Porto, Gaspar Martins Pereira. Quando o enoturismo se torna apreciável ramo da actividade económica daquela região vinícola, cenograficamente distintiva, durante séculos épica e arduamente esculpida por braços humanos, monografias deste tipo podem complementar, com nítido benefício, uma história socioeconómica e uma literatura ficcional reportadas à saga humana ali envolvida, com todo o seu vasto elenco de figuras carismáticas e de figuras anónimas, em que alianças familiares, “sorte das heranças” (p. 65), doenças da videira (e ruína de muitos), emigração, reparcelamento dos solos e proximidade ao rio e aos seus barcos rabelos tiveram sempre uma palavra a dizer.

Duas famílias de lavradores localmente fixadas desde o século XVII — os Rodrigues de Carvalho e os Silva Oliveira — unidas por matrimónio em finais do século XIX (p. 11), conseguiram recuperar da catastrófica filoxera, adquirindo terras adjacentes a pequenos proprietários falidos e tornando a Quinta de Santa Eufémia, adquirida a fidalgos de Soeima (Gaia), o epicentro das suas operações vitícolas e vinícolas mas também parque residencial da família, sucessivamente construído ou requalificado desde 1824. Partilhas feitas no início da década de 1990 reduziram consideravelmente a propriedade, que se estendia para norte, abraçando a denominada Quinta Nova, ou de São Bernardo, em Malpica.

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Um pequeno baú de chapa metálica pintado a verde-esmeralda, guardado no arquivo familiar dos proprietários actuais (pp. 36-37), permitiu conhecer documentação antiga da quinta que Bernardo Rodrigues de Carvalho comprou a Martim Afonso Correia de Mello da Silveira em 1913. Foi pelos papéis extraídos desse acervo histórico que Gaspar Martins Pereira pôde aferir estarem cristãos-novos de Lamego na origem remota da Quinta de Santa Eufémia, em concreto o tendeiro João de Paiva, “devoto de Santa Eufémia”, que sem filhos legou as suas propriedades a Maria Pereira do Espírito Santo, sua sobrinha-neta, que em 1720, ao ingressar num convento em Coimbra, fez herdeiros das suas propriedades (muitas delas contíguas à capela de Santa Eufémia em Parada do Bispo) os próprios pais, Maria do Rosário Carneiro e Manuel Pereira de Almeida, que haveriam de alargá-las por compra de muitas propriedades dispersas. Vivendo no Porto, onde era “cidadão abastado” (p. 44), Manuel seria preso em 1733 — tinha 61 anos — pela Inquisição de Coimbra “sob acusação de judaísmo, heresia e apostasia, por denúncias de familiares, com que estava desavindo por questões de dívidas” (p. 46). Prisão, bens arrestados e pesadas custas dum processo judicial prolongado, de que sairia absolvido, foram duro golpe que levariam à hipoteca e leilão das propriedades de Santa Eufémia e Parada do Bispo em 1751-52.

O novo proprietário da Quinta de Santa Eufémia, Francisco Martins Braga, natural de Barcelos, membro da burguesia rica e afidalgada do Porto, voltara rico do Brasil e mantinha “negócio grosso na América” (p. 49). Apenas quatro anos depois de ter arrematado a Quinta, tornou-se um dos primeiros accionistas da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro (criada em 1756), e viu a maioria das parcelas da sua nova propriedade incluídas na “primeira demarcação de vinhos de feitoria”, quer dizer, os melhores vinhos generosos controlados mediante provas e classificações, com marcos graníticos que ainda hoje ali subsistem (fotos, pp. 50-51). Por mais uma década e picos, Martins Braga continuaria a adquirir outras terras em Parada, quase todas confinantes com a sua Quinta, e outro tanto faria seu filho herdeiro, António Rodrigues Braga de Almeida, que haveria de morrer apenas uma dezena de anos depois, deixando-a à sua filha única, Ana Miquelina de Almeida Pereira Medela, casada com António de Melo Correia, fidalgo da Casa Real, que enquanto esteve à frente da Quinta — até 1808, quando faleceu, residindo na Rua das Flores, no Porto — “não parece ter valorizado a [sua] produção vitivinícola”, que não foi além de uma média inferior a 11 pipas ao ano (p. 49). A herdeira seguinte, Ana Albertina de Melo Correia, casaria em 1814 com José Pedro da Silveira, também ele fidalgo da Casa Real, e senhor da Quinta da Soeima, em Gaia, e depois deles, desde 1838, seu filho José Correia de Melo da Silveira, quando a média de pipas anuais subia para 17-18.

Crise do oidium em 1852, abstencionismo (que a distância favorece), caseiros deixados soltos, e — muito provavelmente — a pertença do herdeiro José ao “microcosmos da juventude dandy do Porto” (p. 58), com as previsíveis consequências para a gestão da Quinta de Santa Eufémia, seriam ainda agravados pela tardia maioridade de seu filho Martim Afonso Correia Melo da Silveira, que, mal cumprida a maioridade, recebeu nos braços uma quinta que “deveria estar bastante arruinada pela filoxera e o seu rendimento não chegaria para pagar as despesas correntes dos granjeios” (p. 60). Hipotecada em 1908, seria adquirida — como vimos, de início — em meados de 1913 por Bernardo Rodrigues de Carvalho, o patriarca de uma das duas famílias que desde então correm juntas pelo bom destino desta Quinta.

Ao contrário dos Rodrigues de Carvalho, os Silva Oliveira  — naturais duma freguesia de São João da Foz do Sousa, Gondomar — “só se fixaram em Parada do Bispo no século XIX” (p. 74). Por volta de 1820, Francisco da Silva Oliveira veio para Parada como administrador ou procurador na Quinta da Mata de Baixo, onde anos depois passariam a viver também dois irmãos e o sobrinho-afilhado Manuel da Silva Oliveira (pai dos seus dois herdeiros menores), enquanto foi adquirindo “uma dezena de boas propriedades”, com vinha, olival, terras de pão e armazém com lagar, um investimento que à data da sua morte, em 1865, somava “quase três contos de réis, uma fortuna para a época, sem contar com grandes despesas feitas na recuperação das vinhas e no seu armazém de Santa Eufémia” (p. 76), comprado em hasta pública em 1861. Novas aquisições em Parada e em freguesias vizinhas — incluindo direitos de uso de água —, tornadas possíveis pela abastada herança, antecederam a sua saída da Quinta da Mata de Baixo e a compra da actual casa da Quinta de Santa Eufémia, defronte da capela, para onde foi viver em 1867. Todavia, tempos muito difíceis chegariam pouco depois. A tuberculose pulmonar levou na juventude seis dos seus oito filhos (e ele próprio, aos 63 anos, em 1896), e a filoxera destruiu-lhe as vinhas.

Num cenário de dívidas, doença e morte, diz Martins Pereira, “o matrimónio de Bernardo Rodrigues de Carvalho com Maria da Silva Oliveira revelou-se providencial para as duas famílias” (p. 81), ainda que a crise vinícola continuasse por longos anos a ameaçar pesadamente a preservação patrimonial, dependente em absoluto de boas vindimas e da venda de vinhos a preços compensadores. Bons negócios com um intermediário de Gaia, José Luciano Marques, em 1913, permitiriam a Bernardo comprar, entre outras, a abandonada e muito degradada Quinta de Santa Eufémia ao mais que apertado Martim Afonso Correia de Melo da Silveira (p. 84), um processo envolvendo credores impacientes e hipotecas de terrenos que só ficou concluído três anos depois, em 1916. No pós-guerra comercialmente auspicioso, além de “remir todas as suas dívidas” (p. 92), lucros da venda dos vinhos seriam mais uma vez reinvestidos na terra. Em Novembro de 1922, a revista Ilustração Portuguesa refere-se a BRC como “importante capitalista”, quando reporta o casamento de sua filha Ermelinda com um professor primário activo em Valongo dos Azeites.

Abria-se novo capítulo numa história também trágica, embora comum na região e no país: após sete partos em onze anos, com cinco filhos mortos muito novos por meningite tuberculosa, também a mãe foi derrubada pela tuberculose, em Setembro de 1933. Ficavam Bernardo e José (foto, p. 106). A tuberculose espreitava ainda, mas sem fatalidades: a filha Maria de Lourdes e o neto Bernardo contraíram a doença, sendo este internado no Sanatório do Caramulo durante longas temporadas, de 1941 a 1945. A partir de 1940, com ampliação da casa da quinta com um novo corpo a sul, “no verão e até às vindimas, toda a família voltava a reunir-se aí, com o regresso dos netos e dos sobrinhos, nas férias escolares” (p. 100), mas depois da “alegria pelo casamento dos netos e do nascimento dos bisnetos”, em 1955-56 a morte consecutiva dos irmãos António e Ermelinda e da mulher Adelaide debilitou ainda mais o patriarca, finado em Novembro de 1958.

Uma contagem oficiosa de cepas da propriedade familiar, em 1962, apontava para 259 280 pés (p. 114). “Os brancos de Santa Eufémia tinham grande procura por parte de casas exportadoras […] para composição de lotes especiais de vinho do Porto” (p. 119). Instalações de vinificação, destilação de aguardente e fabrico do azeite — um negócio menor, muito irregular — haviam sido modernizadas, a capacidade de armazenamento ampliada (até 500 pipas; havia 350 em 1951). A firma “Bernardo Rodrigues de Carvalho, Herdeiros”, criada em tributo do patriarca, propôs-se “seguir o seu exemplo na gestão da propriedade e na condução dos negócios” (p. 127), numa época particularmente condicionada em termos de mão-de-obra, pela mobilização para a guerra colonial e pela emigração europeia, afectando a necessária reconversão vitícola por terraceamento em patamares, sem muros de xisto. Relações longamente firmadas com casas exportadoras de Gaia prosseguiam em velocidade de cruzeiro, mas seriam acrescentadas com outras, como a Barros & Almeida, por exemplo, que estimulou a produção de vinhos rosé entre 1964 e 1976 (p. 131).

Muita coisa mudaria desde então, com o fim do “entreposto único e privativo” (sic) de Gaia, a criação do entreposto da Régua em 1978, e sobretudo a adesão do país à CEE. Regras vitivinícolas comunitárias abriam avenidas à exportação directa desde a região de origem (algo que Bernardo Viseu em vão tentara em 1971), e a contemporânea “profunda revolução vitícola” reduziu a hegemonia quase absoluta do vinho do Porto em favor de vinhos de mesa de qualidade. A Quinta de Santa Eufémia não foi lestra nessa mudança (“as inovações vitivinícolas foram limitadas”, admite Gaspar Martins Pereira), mas a morte de Bernardo Viseu no verão de 1991 veio abrir-lhe um novo ponto de viragem, a que o historiador chama mesmo “O renascer”, título do capítulo 6. Percebe-se porquê: sete irmãos — Alzira, Bernardo, Ermelinda, Miguel, Rosário, Teresa e Vítor —, com idades entre 37 e 26 anos em 1993, invulgarmente unidos no desígnio de refundar, uma vez mais, a Quinta, adquiriram as quota-partes herdadas por tio e primo, e dividiram entre si os diversos edifícios não afectos à agricultura, reabilitando-os para unidades residenciais para todos eles, favorecendo assim a sua permanência em Santa Eufémia. Sobretudo importa notar que todos os sete irmãos tinham já carreiras profissionais em marcha, não dependiam do rendimento dos seus vinhos, e “essa visão exterior […] dava-lhes maior liberdade e racionalidade para construírem um projecto de futuro, em que todos participassem, de acordo com as suas capacidades e disponibilidades” (p. 147; itálico meu).

Em 1993 inscreveram a empresa como produtora-engarrafadora no Instituto do Vinho do Porto e patentearam no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual a insígnia da marca — aguardariam 13 meses pela aprovação!… (v. foto p. 166) —, vendendo de forma directa, na primeiríssima oportunidade, “preciosos vinhos velhos das melhores colheitas” e a “fabulosa reserva de vinhos brancos velhos generosos” (p. 168), de “qualidade invulgar” (p. 175), um “rendimento [que] se revelou essencial para os primeiros invesitmentos, quer na reconversão de algumas vinhas quer na primeira fase de modernização das instalações de vinificação” (p. 153). A reconversão vitícola foi gradual desde então, com castas mais adequadas aos terrenos, com patamares de um bardo, melhor granjeio e métodos de produção sustentável a ganharem terreno nos 50 hectares de vinha da Quinta. O enoturismo também foi activado desde que criada a Rota do Vinho do Porto (1996-2011), com degustação, pequena loja e um alojamento para turistas (fotos, p. 165). Um desses turistas, holandês da loja The Best Wijnkopers, disponibilizou-se para comercializar os seus vinhos na Holanda. Nos últimos 25 anos as vendas de vinhos da Quinta mais que triplicaram, mas um sucesso é particularmente notável: a linha de mesa DOC Douro tinto e branco passou de 4200 garrafas vendidas em 2006 para mais de 28 mil em 2017. “O Brasil é o primeiro cliente da Quinta de Santa Eufémia” (p. 172), e o vinho do Porto representa mais de 80 % do seu negócio. Em 2017, um ponto de venda e exibição dos produtos da Quinta foi inaugurada na cave duma loja de vinhos no centro histórico de Gaia, dando-lhes enorme visibilidade em período de fortíssimo input turístico.

Gaspar Martins Pereira conclui o seu livro da melhor maneira possível, dando conta da expectativa criada por uma nova vindima em marcha, elogiando o “projecto renovador dos sete irmãos, combinando o objectivo de preservar e valorizar o património herdado das gerações que os precederam com a aposta no futuro”, em que “a família inscreve a sua aliança com a terra para criar vinhos de excelência” (p. 176). Tudo certo em tempo de múltiplas incertezas, mostrando-nos que, muito além do meio político, há um país que faz bem, resiste e progride. Brindo a isso.