Título: Rapariga A
Autora: Abigail Dean
Editora: Editorial Presença
Páginas: 18,90€
Preço: 336

As semelhanças entre o romance de Abigail Dean e o caso da família Turpin não podem passar ao lado. Em 2018, David e Louise Turpin apanharam a atenção do público após uma acusação de maus-tratos aos 13 filhos. Como no livro de Dean, uma das filhas conseguiu escapar da casa onde, com os irmãos, era agrilhoada, espancada e passava fome, denunciando os crimes dos pais. A polícia, ali chegada, encontrou provas imediadas de abuso prolongado e tortura. O caso causou choque em especial nos Estados Unidos, onde ocorreu, e para isso muito contribuíram o número de filhos e a duração das torturas.

Em Rapariga A, é Lex Gracie quem foge da Casa dos Horrores, chamando a atenção para o que ali se passava e libertando-se enfim, assim como aos irmãos. A partir do momento em que a denúncia é feita e se libertam, os irmãos fazem a vida em separado, mas o momento em que a mãe morre e lhes deixa a casa obriga a uma incursão no passado através da qual a autora pôde traçar os cenários posteriores à saída da casa e da infância de maus-tratos.

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O ponto principal será então entender quem é aquela gente que, junta, escapou à tragédia pessoal que viveu em coletivo. Olhando-se para o passado, sobressaem as alianças e as traições entre irmãos, a forma como a chegada de um enformava o tratamento dado a outro e os segredos que foram guardados enquanto os miúdos estavam escondidos.

Lex não tem interesse em ver a mãe na prisão, e a sua morte não lhe dói. Ainda que não tenha sofrido maus-tratos físicos às suas mãos, foi negligenciada por ela, que foi cúmplice dos abusos do parceiro. Desta forma, levou a cabo maus-tratos emocionais e psicológicos ao mesmo tempo que permitiu e colaborou com os físicos. Percebe-se que também a mãe os sofreu, mas o que sobeja é o quadro maior, e o panorama de crueldade é inevitável: a mãe permitiu que o pai partisse os ossos aos filhos, os ferisse e os acorrentasse.

Assim, se por um lado temos a camada que pode funcionar como secundarização da sua culpa (a existência dela enquanto vítima), por outro fica claro que os atos de violência não se tornam menos cruéis por serem levados a cabo por alguém que foi violentado. Ou seja, o papel da mãe parece existir mais como explicação do que como desculpa, já que a negligência per se é um abuso. Ao mesmo tempo, e ainda que tal não se tenha passado com Lex, com alguns dos irmãos chegou a haver simpatia, talvez por aquela ocasional centelha em que ela parecia estar tentada a protegê-los.

Contudo, o livro, que parte de uma premissa que parece excitante, falha enquanto thriller. É verdade que há partes que permitem ao leitor adentrar-se na arquitetura do horror, julgando que terá uma imagem global em que os pontos se liguem e tudo fique explicado. Contudo, o livro foca-se mais no período após o escape, não permitindo uma relação de empatia com as personagens, já que o leitor não passa tempo suficiente com elas. Para isso contribui ainda a forma como Dean decidiu construir a narrativa, através de analepses e prolepses constantes que não dão tempo para estar e assentar. Assim, o romance cede à fórmula, e a autora cai no erro de verter informações para a página.