Frente a três dezenas de estudantes e finalistas do ensino superior que estão a participar numa escola de verão em Alcoutim, Fernando Frutuoso de Melo fez este domingo uma comparação entre as instituições europeias e a organização da administração central portuguesa, concluindo que as primeiras não sofrem tanta pressão da opinião pública e têm funcionários mais qualificados e menos hierarquizados. Conclusão: em Bruxelas decide-se mais devagar e melhor, enquanto em Lisboa a falta de base técnica “empobrece a decisão política”, afirmou.

“A que é que estamos a assistir com a pandemia? Toda a classe política quer ir à terça-feira ao Infarmed ouvir os que os técnicos dizem. Para quê? Para terem mais informação técnica e depois assumirem a responsabilidade da decisão política”, começou por explicar o antigo alto funcionário da Comissão Europeia e ex-chefe de gabinete adjunto de Durão Barroso no “governo” da Europa.

Sublinhando estar a intervir em nome pessoal, Fernando Frutuoso de Melo, de 65 anos, que é também chefe da Casa Civil do Presidente da República desde o primeiro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, prosseguiu a argumentação através de várias perguntas: “Imaginem que consultar técnicos era o processo normal de decisão em toda a administração pública. Não haveria porventura decisões mais bem informadas? Não haveria porventura uma adequação maior das decisões à realidade? Não seriam essas decisões as mais adaptadas, durante mais tempo?”

No fim da conferência, em declarações ao Observador e ao Diário de Notícias, acrescentou que o modelo de funcionamento das instituições europeias “não é replicável tal qual na administração pública, senão ninguém faria mais nada”. Porém, se houver “participação de especialistas nas respetivas áreas” e “mais informação em cima da mesa do Conselho de Ministros” — o atual ou outro —, “certamente as decisões poderão ser melhores.”

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Rejeitando que esta visão corresponda a uma vitória da tecnocracia, contrapôs que “não são os tecnocratas que vão decidir”, “a decisão é sempre política e tem sempre de ser”. Está em causa, sim, “decidir com base em opções mais ricas ou em opções menos ricas”. “Se essas opções forem mais ricas, o poder político só tem a ganhar. Os tecnocratas vão porventura preparar melhor as decisões, de forma mais informada e integrar contribuições universitárias, etc.”, concluiu.

Frutuoso de Melo, ao centro, na foto de família com participantes do Summer CEmp

“Problema não está na incapacidade dos portugueses, mas na impreparação”

A intervenção de Frutuoso de Melo foi feita este domingo numa das conferências da escola de verão Summer CEmp, que a representação da Comissão Europeia em Portugal está a realizar em Alcoutim desde sexta-feira. A iniciativa termina nesta segunda.

Ainda em referência ao aparelho burocrático de Bruxelas, a que pertenceu durante quase 30 anos, Frutuoso de Melo avisou que o número de portugueses que ali hoje trabalham é “perigosamente” baixo, o que tem como consequência uma “perda de influência” do país.  A explicação está em que poucos portugueses participam nos concursos públicos das instituições europeias, “por falta de conhecimento” e por acharem que “é muito difícil” obter um lugar. Além disso, notou, os concursos europeus implicam “avaliações a que as pessoas não estão nada habituadas cá”, em domínios como as provas orais ou a organização e exposição de ideias.

“As avaliações nas universidades portuguesas, regra geral, não preparam as pessoas para aquele tipo de concursos. O problema não está na incapacidade dos portugueses, mas na impreparação dos portugueses para aquele tipo de concursos. Daí a necessidade, do meu ponto de  vista, de haver cursos específicos à disposição de quem queira concorrer”, apontou. “O Ministério dos Negócios Estrangeiros já teve essa tarefa, fez isso durante vários anos. Acho que quando tiver oportunidade o fará de novo.”

Em resposta a perguntas da plateia, Frutuoso de Melo abordou outros temas. Um deles: os sem-abrigo em Portugal, área a que Marcelo Rebelo de Sousa tem dado atenção. Disse não compreender como é que o país não consegue resolver um problema que afeta seis mil pessoas. “Não estamos a falar de seis milhões. Um país desenvolvido como Portugal não consegue resolver o problema de seis mil pessoas? Acho que é resolúvel, que se poderia e deveria fazer  mais. O Governo tem feito algumas coisas, organizações não-governamentais têm feito algumas coisas, mas isto merecia um grito profundo.”

Mário Centeno: “Sorte é prepararmo-nos, daí vem o conhecimento, a universidade”

Horas antes, numa outra conferência do Summer CEmp, já tinha falado Mário Centeno, através de videochamada. No tom informal que caracteriza as sessões, o governador do Banco de Portugal referiu-se ao facto de ter nascido em Olhão, e não em Vila Real de Santo António, onde os pais viviam na década de 60. O Serviço Nacional de Saúde era  “inexistente à data” e “os algarvios iam nascendo onde os serviços das parteiras estavam disponíveis”.

A este propósito recusou a ideia de que a interioridade seja hoje um peso para muitos portugueses. Tem havido “enormes progressos no desenvolvimento do interior”, mesmo que esses progressos “tenham ficado aquém das expectativas”. Centeno preferiu apelar a que “nos foquemos na capacidade de nos prepararmos para a vida”. “Busquemos a nossa sorte. Sorte é prepararmo-nos, daí vem o conhecimento, a universidade. E depois aproveitarmos as oportunidades.”

A uma pergunta sobre como é que os jovens portugueses podem conseguir melhores salários, e tendo em conta o anúncio deste domingo do primeiro-ministro de que pretende alargar isenções fiscais nos primeiros anos da vida ativa, o ex-ministro das Finanças sugeriu cautela com tais isenções. No dizer de Centeno, a solução para incentivar os jovens a entrar no mercado de trabalho é “seguramente pela via fiscal” mas apenas se “a estabilidade orçamental” assim permitir.