O Tribunal de Instrução Criminal de Santarém começou esta quinta-feira a ouvir os arguidos do processo em que o ex-presidente do município Moita Flores é acusado de corrupção e de branqueamento, no âmbito das obras do Jardim da Liberdade.

O debate instrutório iniciou-se na manhã desta quinta-feira, na sala da Assembleia Municipal de Santarém, com a audição do antigo diretor do Urbanismo do município António Duarte, o qual afirmou que só tomou contacto com a obra de construção do parque de estacionamento subterrâneo no Jardim da Liberdade quando os trabalhos se encontravam parados e era necessário assegurar que estariam concluídos antes das comemorações do 25 de Abril, celebradas em 2010 em Santarém, com a presença do então primeiro-ministro, José Sócrates.

De acordo com a acusação, o ex-presidente da Câmara Municipal de Santarém “recebeu vantagem patrimonial” do empresário da construção civil que realizou a obra, a ABB, “por intermédio de sociedades comerciais ligadas ao respetivo grupo empresarial e ao filho” do autarca, pedindo o Ministério Público a condenação solidária dos seis arguidos (quatro individuais e dois coletivos) no pagamento ao Estado do montante de 300.000 euros.

António Duarte afirmou ter sido incumbido por Moita Flores, em 2009, para ir a uma reunião da comissão que acompanhava a obra, em substituição da então diretora do Departamento de Urbanismo, para “perceber por que razão estava parada”, tendo acabado por assumir a coordenação desse grupo de trabalho.

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Segundo o arquiteto, à data, a obra estava feita a metade, “com um buraco enorme aberto no centro” da cidade, tendo sido decidido não avançar com a segunda fase da empreitada, reduzindo os mais de 700 lugares de estacionamento previstos para cerca de 400.

António Duarte afirmou que, apesar do estudo económico, o parque não teria viabilidade se comportasse 700 lugares, além de que, durante a obra, se verificou que as infraestruturas da PT, cujo edifício se situa nas proximidades, não estavam de acordo com o projeto existente na Câmara Municipal, situação que a empresa de telecomunicações “levaria meses a corrigir”.

Por outro lado, afirmou que se receou que o alargamento do buraco para acomodar mais lugares poderia colocar em risco edificações existentes nas proximidades, a que acrescentou a necessidade de acompanhamento arqueológico da obra, o que levou a juíza de instrução a questionar se os estudos e projetos realizados não atenderam às situações detetadas, salientando que todas elas deveriam ter sido previstas e pesado nos prazos estabelecidos.

António Duarte disse, ainda, que foi o então vereador João Leite a comunicar-lhe que a segunda fase da obra não se faria e que as obras à superfície, como as cafetarias e o espelho de água, já não seriam realizadas pela própria Câmara, como previsto, mas sim pelo empreiteiro.

Segundo a acusação, a atribuição destas obras, que estavam orçadas em 3 milhões de euros, ao empreiteiro terão sido uma forma de compensação pela não realização da segunda fase da empreitada.

À pergunta da juíza sobre se a decisão foi formalizada e se algum contrato foi assinado e por quem, António Duarte afirmou desconhecer, declarando ter-se limitado a transmitir uma informação que recebeu do vereador com o pelouro, a qual terá sido sustentada num parecer do então consultor jurídico do município João Neves.

Sobre o parecer pedido à auditora KPMG sobre os valores envolvidos na compensação por incumprimento parcial do contrato, o arquiteto foi questionado sobre o que o levou a pedir que fosse desconsiderado o valor que constava do estudo de viabilidade económica, tendo afirmado que se limitou a pedir que analisassem se poderia haver valores diferentes e que foi apurado um valor de 1,8 milhões de euros “entre obras a mais e obras a menos”.

Questionado sobre o facto de a acusação afirmar que existiu um “empolamento” dos custos das obras inicialmente imputadas à Câmara Municipal e depois entregues ao empreiteiro, António Duarte afirmou que desconhecia que esse valor tinha sido apresentado pela empresa no estudo prévio e que pensava que eram valores definidos pelos técnicos da autarquia, só tendo percebido que assim não era em 2020 quando leu a acusação.

Questionado sobre se estas obras foram alvo de algum procedimento concursal, o arquiteto afirmou que o parecer jurídico era “claro” quanto à sua legalidade, sendo consideradas um “prolongamento” dos trabalhos que estavam em curso e única forma de assegurar que seriam cumpridos os prazos.

Para o arquiteto, tratou-se de um “bom acordo”, já que o valor de 1,8 milhões de euros seria “um valor justo para o que estava em causa”.

Lembrado que é acusado neste processo pela prática de atos ilícitos, António Duarte disse achar “estranho” pois, disse, limitou-se a cumprir ordens superiores.

Moita Flores declarou vontade de prestar declarações nesta fase instrutória, pedindo, contudo, ao tribunal para que o seu depoimento decorra sem publicidade, porque irá falar dos filhos e abordar questões do foro íntimo.

A conceção e exploração do parque de estacionamento subterrâneo no atual Jardim da Liberdade foi adjudicada em abril de 2008 à empresa Alexandre Barbosa Borges (ABB), de Braga, numa parceria público-privada que envolvia 9 milhões de euros e que contou com os votos favoráveis da maioria social-democrata e contra da oposição socialista.

Além da construção e exploração do parque de estacionamento, que previa 760 lugares, a empresa ficou ainda com o monopólio do estacionamento tarifado à superfície, em troco de uma renda anual de 240.000 euros.

A acusação do Ministério Público imputa a Moita Flores um crime de corrupção passiva e um crime de branqueamento, sendo o dono da ABB acusado de um crime de corrupção ativa e de branqueamento.

António Duarte é acusado de cumplicidade na prática do crime de corrupção, um filho do ex-autarca e duas pessoas coletivas da prática do crime de branqueamento.