Ouvimo-lo gritar a dada altura, com voz de poeta maldito, de velho marinheiro que já muito navegou e muito bebeu: “Quereis o incendiário? Aqui o tendes”. Ouvimo-lo, nessa canção, a gritar “estou a fazer a nova revolução” ou “só quero ver o poder a arder”. Tudo isto com uma banda foguetão atrás, desabrida, a misturar sem travões punk, free-jazz e noise-rock num mesmo caldeirão.
Quem ouvimos gritar, declamar e dar voz a poemas provocadores, de combate, é António Pedro Ribeiro, poeta, vocalista e até antigo pré-candidato à Presidência da República. A banda de que António Pedro Ribeiro faz parte são os portuenses Sereias, que esta quarta-feira arrasaram o festival Tremor como um furacão.
No Coliseu Micaelense, o número de pessoas que assistia ao concerto de Sereias no seu final parecia consideravelmente menor do que no início. Não conseguimos contar todas as cabeças ou garantir com certeza que assim foi, mas fomos vendo, enquanto este TGV passava, algumas pessoas a saírem da carruagem.
Não é propriamente surpreendente: não estamos a falar nem de uma banda convencional nem de música bem comportadinha, cheia de respeitinho, que não aleija. É uma espécie de anarquia musical, uma banda sem propriamente pai ou mãe na música portuguesa (a influência mais reconhecível talvez seja dos Mão Morta, mesmo assim é outra coisa) que quer partir os pratos todos do país.
Em palco são sete, entre vozes complementares, saxofone, trompete, sintetizador, guitarra, bateria, clarinete e baixo. E enquanto António Pedro Ribeiro vai, qual espalha brasas libertino, insultando Deus, primeiros-ministros e o poder, o capitalismo e o culto do dinheiro, políticos, banqueiros e empresários, a escravatura do trabalho e o “fascismo em todo o lado”, os seus seis comparsas vão garantindo que o tom da música é também ele de combate, com o volume no máximo e o ruído no vermelho. Não é, porém, apenas barulho: há ideias musicais notórias e por entre o procurado caos encontram-se sequências musicais impressionantes, ainda mais notórias ao vivo do que no disco de estreia O País a Arder, de 2019.
A provocação das palavras, à Luiz Pacheco nos seus momentos mais diabólicos e corriqueiros (mais mal educados, diriam os mais sensíveis), é coisa para afastar quase toda a gente mas que não chegue para impedir que nos aproximemos de Sereias: mais do que acreditar no que António Pedro Ribeiro (APR) diz e no que estes sete bravos marujos procuram quando fazem de um concerto um incêndio sonoro, não é difícil acreditar neles, nas convicções e na força musical destas Sereias. “A coisa vai estoirar”, ouvimos APR gritar das entranhas. Os Sereias garantem que viram o país a arder mas nós é que assistimos a um furacão.
A estufa de Angélica Salvi e a honra de “dar música à ilha”
Antes da atuação de Sereias, o concerto mais polarizador do segundo dia do festival Tremor, a programação musical foi relativamente curta, até porque este festival de São Miguel, Açores, faz-se também de atividades complementares aos concertos tradicionais.
Houve quem fosse simplesmente dar um mergulho às piscinas naturais do Pesqueiro, que por esta altura enchem-se de gente, e quem decidisse visitar a instalação “Entrance / in trance”, que se propunha a “potenciar a conexão do Homem com a Natureza” através “do som dos gongos” produzido pelo baterista e compositor João Pais Filipe e de “elementos visuais e escultóricos” concebidos por Beatriz Brum — num percurso que percorreu vários pontos da ilha. Houve, ainda, quem optasse por fazer já o Tremor Todo-o-Terreno, um trilho pedestre em local surpresa com música composta de raiz (por artistas convidados) a pensar no espaço e num percurso que pode ser feito em diferentes horas de diferentes dias do festival, até para não concentrar todos os “tremoços” (os portadores de bilhete) ao mesmo tempo.
Esses programas complementares fazem também com que só nos concertos noturnos se juntem todas as centenas de pessoas que passam esta semana em São Miguel para participar no festival (são pouco mais de 500 espectadores por dia, com o número a ascender a mais de 700 se incluídos convidados, parceiros, artistas e staff). Mas na tarde de esta quarta-feira, no único concerto ao ar livre — todos os outros foram em sala, com lugares distanciados e obrigação de uso de máscara —, um bom número de “tremoços” juntou-se para ver uma atuação surpresa da harpista e compositora Angélica Salvi, que em 2019 editou o disco Phantone e este ano revelou a canção “Burnt Cork”, com Moullinex.
Tratava-se de uma das sessões do chamado “Tremor na Estufa”, um programa de concertos vespertinos em sítios surpresa (o local é revelado às 11 horas desse mesmo dia, para que o público possa estar presente) e sem que se saiba antecipadamente quem se irá ouvir. Neste caso, a atuação era da harpista espanhola que vive no Porto há dez anos e que atuou no Jardim António Borges, espaço de árvores abundantes e com grutas, recantos e mirantes que lhe dão um charme muito particular.
Ao longo da sua sessão musical, Angélica Salvi foi oferecendo música encantatória àqueles que a ouviam, a maioria sentada na relva, alguns de olhos fechados e a apreciar a beleza melódica e introspetiva do som da harpa e o bom gosto no uso de loops. Enquanto a artista espanhola residente no Porto tocava, pássaros iam-se intrometendo nas composições e na música, cantando e promovendo um diálogo raro entre os sons da natureza e os sons da música humana tocada ao vivo.
São também momentos como estes, em que a música acontece em espaços naturais sugestivos e desconhecidos dos visitantes, que tornam o Tremor um festival que tem um público habitual, indefetível, que se vai fidelizando de ano para ano e que regressa religiosamente a Ponta Delgada. Na véspera, na apresentação do concerto de abertura, os organizadores davam inclusive as boas-vindas aos espectadores dizendo-lhes que tinham pela frente “cinco dias em que Ponta Delgada e São Miguel são o nosso palco”.
O Tremor é por isso uma experiência musical mas não só. Ao Observador, o diretor criativo do festival, Márcio Laranjeira, explicava-o de forma cristalina: “O que fazemos basicamente é dar música à ilha, fazer com que as pessoas vão viajando e conhecendo o espaço através do que vamos programando. Para nós, é muito importante a relação que quem vem cria com quem está, com quem vive aqui e com os seus pares”. É, por isso, um festival comunitário e profundamente físico, que se descaracterizaria se acontecesse em formato online, já que a música dialoga com os muitos recantos da ilha em que é tocada.
Em “horário nobre”, um duo de bateristas: assim é o Tremor
Face ao dia anterior, o de arranque, o ambiente no Tremor foi ainda assim bastante diferente esta quarta-feira. Se na véspera os concertos noturnos tinham acontecido ao ar livre, o que fez com que fosse possível vê-los de pé e com uma bebida na mão (cenário ainda retro-futurista no continente, mas já possível em São Miguel pelas regras locais), esta quarta-feira todas as atuações foram mais “pandémicas”, com o público sentado e quieto a ouvir.
Foi assim no concerto de Luis Gil Bettencourt, a primeira atuação da noite. E foi assim no concerto dos CZN, um duo de baterista de que fazem parte João Pais Filipe e Valentina Magaletti, que em 45 minutos fizeram apenas uma paragem, suando as estopinhas num exercício físico impressionante. Foi quase tão surpreendente quanto a capacidade que os dois mostraram de dialogar um com o outro apenas através dos pratos, utilizando diferentes e invulgares recursos da bateria para conversarem — ocasionalmente de forma mais lenta, quase sempre em ritmo acelerado.
Não só a forma como o duo explorou os diferentes recursos da bateria mas também os jogos de luzes cuidadosamente pensados fizeram com que o público permanecesse sentado e feliz, na maior sala de Ponta Delgada (o Coliseu Micaelense), durante 45 minutos de concerto — com uma pausa apenas — movidos fundamentalmente a som de bateria. Os aplausos e o sit dancing dos espectadores nas cadeiras não deixava dúvidas: fora uma aposta bem conseguida.
Esse é um outro dos traços identitários do Tremor, a inclinação para o risco. É certo que não é um festival de dimensão grande, comparável (no número de espectadores) à dos maiores festivais de música do país, e também é certo que este ano decorreu com lotação mais reduzida. Porém, programar um concerto instrumental de um duo de bateristas para “horário nobre” e para uma sala centenária e imponente como o Coliseu Micaelense não deixa de ser todo um programa de intenções. Quem chega, chega também para descobrir e com disponibilidade e abertura para se deixar surpreender — ou não estivesse o festival permanentemente esgotado a cada ano em que se realiza.