Ao longo dos últimos vinte e cinco anos, Tom Gray tem acumulado diferentes funções na indústria musical. Começou na segunda metade dos 1990s, enquanto membro fundador dos Gomez, banda com alguma relevância num momento de mudança da britpop – chegaram a vencer o Mercury Prize, em 1998 – e atualmente trabalha com questões pouco populares mas vitais para o meio: os royalties, os direitos e a representação de músicos, seja através da PRS For Music, a Sociedade dos Autores britânica, a Featured Artists Coalition ou a Musician’s Union. E não se fica por aqui.

No início da pandemia, Gray arrancou com a campanha #BrokenRecord para alertar consciências e mudar a distribuição de rendimentos via streaming, numa altura em que os músicos estavam impedidos de tocar ao vivo. A pandemia foi o catalisador para algo em que já trabalhara há muito e que está intrinsecamente ligado com outras funções suas – mesmo enquanto músico. Tom Gray estará presente no MIL, nesta sexta-feira, entre as 14h00 e as 15h00, no Startup Lisboa Main Hall, no Hub Criativo do Beato, para falar na conferência Another Way For Digital Transformation, sobre streaming e sobre métodos para equilibrar este sistema para algo mais justo. Estivemos à conversa com Tom Gray via Zoom, pouco antes de viajar para Lisboa.

"Alguns problemas são tão grandes que parece impossível fazer algo para os resolver. Senti que poderia fazer algo, porque percebo o sistema legislativo e os mecanismos para fazer pressão. E vou continuar"

O que o traz ao MIL?
Penso que a razão principal pela qual fui convidado foi pela campanha que iniciei há vinte meses — #BrokenRecord – para reformular o streaming. Com o tempo aprofundei imenso modelos alternativos, novas opções legislativas e regulatórias, sobre direitos de autor, sobre música, tornei-me especialista nessa área. Mas nunca foi algo que pensei ser, não era um obetivo que perseguia. Não estou no MIL porque sou músico há vinte e cinco anos, nem por causa das outras coisas que faço, mas porque há vinte meses decidi que estava farto da forma como a indústria musical funciona porque a distribuição de resultados, de dinheiro, não é justa.

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O Tom teve uma banda com sucesso [Gomez] num tempo bem diferente [final dos 1990s], quando as coisas já estavam a mudar. O que é se pode alterar para que volte a existir aquilo que diz ser “justiça” para os músicos?
É preciso voltar à base e trabalhar a partir daí. Há duas coisas problemáticas a nível de lei, isto de forma global. Uma tem a ver com os direitos de autor e outra com monopólios. A legislação, a um nível global, não é adequada para estes propósitos. Toda a gente sabe isso. Nos Estados Unidos fala-se muito de mudar as leis da concorrência, porque a Google e a Amazon tornaram-se grandes de mais. Mas todos os mercados têm este problema, o que inicialmente eram ferramentas tecnológicas disruptivas, tornaram-se gigantescos monopólios. Isso é péssimo para a sociedade, para toda a gente. Há esta ideia de que um monopólio só é mau se afetar os consumidores: isso é uma mentira. É preciso ver como os monopólios afetam a cultura, a sociedade, os direitos dos trabalhadores. Há todas estas coisas que são importantes que são postas de lado porque não temos controlo sobre os monopólios. E ficamos sentados a olhar para estes bilionários – talvez tenhamos um trilionário em breve – enquanto ficam ainda mais ricos. Porque é que ficamos sentados a ver isto a acontecer? Desfaçam as companhias deles, eles não têm um direito nato de serem donos de companhias que crescem eternamente. Não sei de onde isso vem, essa ideia. Os governos estão sentados sobre este assunto há imenso tempo.

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Mas como é que essa questão afeta a indústria musical em particular?
No streaming existe imensos problemas. A Google é o maior problema, porque não paga adequadamente a música aos artistas, porque não faz as licenças como estas deveriam ser feitas. A diretiva dos direitos de autor foi mal feita, a implementação parece que não irá ajudar muito. Isso desvaloriza o valor de toda a música, porque se conseguimos tê-la de graça, porquê pagar por ela noutro sítio?

Mas se essa ideia faz parte do dia a dia, como é que se pode alterar?
Não acredito que as pessoas pensem de facto que a música é gratuita, penso que acham que a música é conveniente. Mas pode ser conveniente e ser paga ao mesmo tempo. Devia era dizer-se à Google: “se criaste este sistema – YouTube — que não é um serviço de música, embora oito em cada dez vídeos vistos sejam de música, mesmo que queiras dar isto de graça, devias pagar por isto enquanto empresa.” Esse é o problema, se queres que a música seja grátis, para os teus usuários, então a Google devia pagar por isso. Claro que também há o problema do Spotify, e da Apple, que mantêm os preços baixos e, por isso, o Spotify não aumenta os seus preços.

Mas aí é uma questão de mercado.
E dentro dele há a partilha de rendimentos, que é um desastre. Porque o mercado cresce e cresce, mas o valor do produto que o consumidor paga desce, o que significa que o valor pago por cada stream desce. O rendimento dos artistas desceu todos os anos, desde que o streaming começou. Isso não faz sentido. Temos de encontrar um sistema melhor do que este. E temos a lei dos direitos de autor, e a última vez que a WIPO [World Intellectual Property Organization] fez algo em relação a isso, foi para os downaloads. E quem pensa que streaming é o mesmo que downloads, está completamente errado. Não é. Por isso, porque é que a lei que orienta o streaming é a mesma para os downloads? Não guardamos nada, não ficamos com nada, estamos a alugar um serviço. Se deixarmos de o pagar, perdemos acesso a qualquer conteúdo. Por isso, porque é que é equiparada aos downloads?

É uma boa pergunta. Sabe a resposta?
Porque as grandes editoras estão muito felizes com isso, por poderem ter o streaming enquanto download. Porque podem continuar a pagar mal aos artistas, porque se enquadra dentro do sistema que existe. A WIPO não fez nada em relação a isso. Porquê? Porque as grandes empresas, com muito dinheiro, influenciam o sistema regulatório. E devia acontecer o contrário, o sistema regulatório devia proteger os cidadãos, a sociedade, a cultura. Que sentido faz um sistema regulatório que protege os interesses das empresas? Que são os mesmos interesses que criam monopólios. Obrigado por terem construído um sistema que facilita os monopólios. Há pouco tempo descobri que uma das razões pela qual a PRS [Performing Right Society], onde também trabalho, foi porque Samuel Coleridge-Taylor, um compositor negro do século XIX, morreu de pobreza. Isto porque alguém comprou as suas peças, e embora sejam imensas, ele nunca recebeu mais nada delas. E foi por isso que a PRS foi criada, para garantir que há direitos que permitam que o dinheiro continue a chegar às pessoas que criam a música, para que não morram na pobreza. Parece que esquecemos que essa é a base deste tema, a razão pela qual temos estes direitos de autor é para proteger o direito à vida das pessoas, para que possam viver e criar. E este sistema atual não tem isso no seu ADN. Sei que não vamos acabar com o capitalismo, mas isto não pode ser só sobre os vencedores. É preciso proteger a classe dos músicos, senão a protegermos, vamos perdê-la. A partir do momento em que a perdermos, não a teremos de volta. É como os construtores das catedrais, não é possível construir uma catedral gótica atualmente porque o conhecimento de como a fazer desapareceu, para sempre. Não sabem como o fazer. Se o que quereos é música feita em computadores, no quarto, para sempre, porque essa é mais barata de se fazer, então OK, vamos fazer isso. Mas e o resto?

Já conseguiu ver algum resultado desta sua campanha #BrokenRecord?
Houve alguns sucessos, a Sony concordou em esquecer dívidas históricas, a BMG vai suportar a minha campanha e tentar fazer acordos mais éticos. Manter esta pressão e esta luta, mesmo sabendo que não vamos corrigir o sistema por inteiro, é isso que queremos. Estamos a conseguir ter alguns resultados tangíveis. Mesmo que seja a única coisa que consegui, estarei feliz com isso. Alguns problemas são tão grandes que parece impossível fazer algo para os resolver. Senti que poderia fazer algo, porque percebo o sistema legislativo e os mecanismos para fazer pressão. E vou continuar.