Título: O Hotel de Vidro
Autora: Emily St. John Mandel
Editora: Editorial Presença
Tradução: Marta Mendonça
Páginas: 272
Preço: 17,90

Depois de Estação Onze, livro que catapultou Emily St. John Mendel para a linha da frente do panorama literário norte-americano, chega-nos a Portugal este O Hotel de Vidro, que recupera personagens do anterior. Aqui, assistimos, através de personagens bem formadas e entrelaçadas, à história de um colapso financeiro entre analepses e prolepses, que é talvez a forma mais dinâmica de transmitir uma história. E dinamismo será a palavra-chave deste romance, já que, nos seus sucessivos solavancos, Mendel nunca deixa antecipar para onde se encaminhará o enredo. Tal fará parte da sua estratégia narrativa, já que se assume que uma coisa não é sempre o que teria de ser.

Bebendo do escândalo financeiro de Bernard Madoff, que morreu recentemente, enquanto cumpria uma pena de prisão de 150 anos pela maior fraude financeira da história, num esquema em pirâmide que atingiu mais de 60 mil milhões de dólares, a autora criou um romance em que explora, num âmbito ficcional, as consequências de uma fraude desta envergadura. Para isso, criou Jonathan Alkaitis, um financeiro de Nova Iorque. Este não se baseia em Madoff, o seu crime é que sim: uma fraude em pirâmide, que consistia em usar poupanças de uns clientes para pagar os juros de outros e que é conhecida por esquema Ponzi, já que se baseia nos passos dados por Chales Ponzi na década de 1920, cuja fraude implicou 50 mil milhões de dólares americanos.

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A verdadeira mestria de Mendel, contudo, está em não fazer de Alkaitis a personagem-eucalipto que seca tudo à volta. Pelo contrário, o protagonismo é dado a quem o cerca, e quem passa anónimo pela história não o faz de forma incólume. Assim, é nessas personagens que Mendel se estende, dando-lhes carne e textura e, não sendo estas fulcrais na forma como se desenrola o esquema Ponzi, fica claro que o que a autora apresenta é uma entre várias hipóteses de vida. Aliás, as primeiras dezenas de páginas do romance até o apontam em direções bem diferentes, já que a narrativa de Mendel teve alcance no passado, mostrando as ramificações pessoais das personagens que são periféricas ao crime em causa. Assim, a autora focou-se no quotidiano, tornando-o extraordinário pela sua banalidade, explorando, por exemplo, a condição de um viciado em opiáceos. Claro, um olho atento até poderá encontrar a ponte com os viciados em dinheiro, mas tanto um como outro são elementos constitutivos – internos – da formulação narrativa. Tudo se entrelaça numa narrativa que nos dá mais do que uma história a direito, cronológica e sem sobressaltos. Por parecerem, a dada altura, extrapolar o fio narrativo, adensam-no, dando mais do que o que seria meramente funcional e necessário, criando sentido e dando ar de verdade.

Um dos aspetos de maior interesse do romance será o da relação de Vincent com o dinheiro. Ex-empregada do bar do Hotel Caiette, de que Alkaitis é proprietário, acaba por fazer com ele uma vida em conjunto. A partir daí, a autora mostra o impacto que o dinheiro como certeza tem em quem o teve sempre contado. A esta nova condição, ao mundo que parecia idílico e distante, a autora chama “reino do dinheiro”:

Não eram coisas que a mantinham nessa estranha vida nova, no reino do dinheiro; não era a roupa, os objetos, as malas ou os sapatos. Não era a casa maravilhosa ou as viagens; não era a companhia de Jonathan, embora ela gostasse genuinamente dele; não era sequer a inércia. O que a mantinha nesse reino era a condição antes inimaginável de não ter de pensar no dinheiro, porque é isso que o dinheiro nos proporciona: a liberdade de deixarmos de pensar no dinheiro. Se nunca vos faltou, então não compreenderão a profundidade disto, o quanto isso muda a nossa vida por completo.” (p. 88)

Também aí se vai entendendo o desfasamento, intuindo uma certa sensação de alteridade, de que Vincent ainda não está a cem por cento na nossa condição. Após a condição efémera do dinheiro, vê-se numa em que o dinheiro não acaba, e também aí se vem a revelar a efemeridade. O crash económico vem mostrar que o reino do dinheiro também pode ser volátil.

Em O Hotel de Vidro, tudo é enredo, não se perde tempo com voltas escusadas ou contemplações. A narrativa vai e vem, tal como a vida. Mendel toca em vários pontos, atingindo várias pessoas. Do extraordinário ao banal, toca em tudo, mostrando o primeiro no segundo e vice-versa.