Título: Triste fim de Policarpo Quaresma
Autor: Lima Barreto
Editora: Penguin Clássicos
Páginas: 352
Preço: 11,90€

A notícia da edição da coleção de clássicos da Penguin foi recebida com entusiasmo. Além de se tratar de uma coleção que formou leitores e construiu bibliotecas, em Portugal significava ainda a publicação do clássico Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto (1881-1922), com prefácio de Lilia Moritz Schwarcz e Clara Rowland.

Publicado em 1911, o romance, ambientado no final do século XIX, é inteligente, sarcástico e contundente, focando-se num homem que, apanhado nas convulsões da época, é uma figura ímpar de mistura entre razão e fanatismo. O major Policarpo Quaresma é um fanático do Brasil. Nacionalista convicto, ama tudo o que é Brasil, despreza tudo o que vem de fora, incluindo a língua portuguesa, imposta aos nativos, com tiques de estrangeirismo. Assim, “certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil” (p. 56) e ante a  “humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas por parte dos proprietários da língua” (p. 56), enceta uma petição para que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro.

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Os seus motivos, para lá da ordem sentimental, são de ordem fisiológica:

“(…) é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por ser criação de povos que aqui viveram e ainda vivem, portanto possuidores da organização fisiológica e psicológica para que tendemos, evitando-se dessa forma as estéreis controvérsias gramaticais, oriundas de uma difícil adaptação de uma lígua de outra região à nossa organização cerebral e ao nosso aparelho vocal – controvérsias que tanto empecem o progresso da nossa cultura literária, científica e filosófica.” (p. 57)

Para Policarpo, tudo é nação. A comida consumida pelos nativos deve provir de solo brasileiro e, assim, quer que o país se alicerce numa economia agrícola, afirmando que “A nossa terra, que tem todos os climas do mundo, é capaz de produzir tudo que é necessário para o estômago mais exigente.” (p. 19). Assim, ao ter de encarar “a manteiga que fica logo rançosa”, encontra-lhe a vantagem: “É porque é de leite, se fosse como essas estrangeiras aí, fabricadas com gorduras de esgotos, talvez não se estragasse…” (p. 19).

Policarpo advoga paixão, lê-se fixação. Ante a projeção de uma glória vista ao longe, todos os seus planos falham em jeito de desastre. Assim, ao longo do romance, Lima Barreto faz-nos oscilar entre humor e drama; informação e ilusão; realidade e projeção. Os diálogos são de gente a sério e nem o tom de paródia de Policarpo o faz menos credível. O desdém que provoca existe em concomitância no meio em que a personagem se insere e no leitor do século XXI. Ao mesmo tempo, dado o extremar dos nacionalismos na Europa dos últimos anos, nada disto parece muito longe ou muito antigo.

O objetivo de Policarpo é defender o seu país a todo o custo, mesmo que não haja uma ameaça. A própria existência dos outros já tem tom de ameaça. A rivalidade entre Amazonas e Nilo atinge-o, ainda que ninguém pareça assumir uma inimizade entre dois rios. Mas, além de nem querer ouvir falar do segundo, acrescenta quilómetros ao primeiro para que tenha uma vitória indiscutível.

O fervor patriótico toma conta dele e a suma ironia do romance vem depois. Um dia, resolve traduzir um ofício para tupi. O documento segue discretamente até ao ministério, onde é recebido com pasmo, já que ninguém sabe que língua é aquela. Assim, o falhanço do projeto da adoção do tupi como língua-mãe cai por terra, e este é o maior dos seus falhanços: a proposta não apenas não tem apoio como não tem sequer falantes. (Naturalmente, tem-nos em curta escala, mas a língua não é entendida pela generalidade dos nativos.) O seu projeto patriótico esbarra, assim, na realidade da sua pátria.

Os dissabores de Policarpo continuam ao longo do romance. Imbuído pela intensidade de uma paixão, a razão cede em última instância, e o país também não parece querer encaminhar-se para cumprir a sua proposta agrícola. Finalmente, a Revolta da Armada mostra a Policarpo de que forma se opera a violência.

No romance, Lima Barreto dá também ênfase, numa prosa eficaz e direta, a gente que socialmente é o ar que dá, como o homem que finge ler de forma a colher um prestígio social que não assenta em matéria de facto. Em Policarpo, contudo, que esconde as suas leituras e é malvisto por ler e andar a passear com um violão no braço, tudo é ideal.

Assim, no romance, triunfa a hipocrisia de uma sociedade para as aparências. O idealismo de Policarpo, ingénuo, esbarra na realidade, ao mesmo tempo que se põe a nu a dimensão do seu risível fanatismo. Não há uma divisão dicotómica ou maniqueísta da realidade, e foi isso que Lima Barreto fez bem: a ironia que traz permite ver o Brasil de vários ângulos e a visão caleidoscópica que dá ao leitor permite um retrato em panorama.

Mais: mostra-nos que houve um tempo em que a literatura brasileira se focava no mundo e no Brasil, não num ego. Com o massacre da auto-ficção a espraiar-se na criação artística, o romance perdeu fôlego, a escrita fechou-se num casulo, as grandes narrativas ficaram em papel velho. Nos últimos anos, temos assistido no Brasil a uma prosa mais fácil que fecha a criação na composição na primeira pessoa, tão mais fácil e de alcance tão mais curto. Exceções haverá, claro, mas esta reedição de Lima Barreto vem de pedra e cal mostrar que o que faz história é a história: enfrentá-la, encará-la, sujar as mãos. Policarpo Quaresma é uma personagem inesquecível porque, além de ter sido construído enquanto gente, é identificável como a fação de um povo, e a sós dá-nos uma versão de um Brasil.