Título: Notas sobre um naufrágio
Autor: Davide Enia
Editora: D. Quixote
Tradução: Tânia Ganho
Páginas: 200
Preço: 14,90

Davide Enia foi ao osso. Em Notas sobre um naugráfio, a impressão que fica é a de que alguém escancarou a realidade. Para escrever a obra, o autor italiano partiu da sua experiência de observação em Lampedusa, lugar onde África e Europa se tocam ao de leve e que funciona, por isso, como zona primordial de desembarque de quem atravessa o mar em busca de uma vida.

No meio da selvajaria que é a luta pela sobrevivência, quem chega à Europa já traz um mundo às costas. Temos os rapazes feridos, as raparigas violadas, uns e outras maculados pela morte dos seus próximos, tocados pela sobrevivência a custo. Muitos morrem pela água, quem a vasculha encontra cadáveres uns atrás dos outros. Perante um cenário de quase impassibilidade institucional, há quem os ajude a chegar a terra.

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Davide Enia chama romance à obra, mas a longa narrativa parece incidir numa versão dos factos por parte do próprio. “Este livro é um romance. Conta o que está a acontecer no Mediterrâneo – as travessias, os salvamentos, os desembarques, as mortes – e fala da relação entre mim e o meu pai, abordando ainda a doença do meu tio, seu irmão”, afirma.

Na obra trazida a Portugal pela D. Quixote, um pai e um filho veem de que forma a história se tece ante os seus olhos. O mar de Lampedusa é um lugar onde não se pode julgar que a história está quieta e ultrapassada, que as grandes convulsões sociais são coisas do passado. O que se passa no Mediterrâneo é um dos grandes temas dos nossos tempos e uma das maiores provas de que os conflitos nacionais e internacionais põem em xeque a vida humana. Se nos países onde desembarcam os migrantes, os refugiados ou náufragos há manifestações de solidariedade, a realidade é menos romântica e quem chega é amiúde visto só como de fora.

Notas sobre um naufrágio é, por isso, um livro urgente. Pôr a técnica narrativa ao serviço da história como ela é, sem cair no erro de dar lições ou de ensinar, simplesmente mostrando, é fulcral tanto do ponto de vista político como social e como literário. O registo da história fica feito, e ao leitor não é permitido não se imiscuir nos tempos. Pelo contrário, o que parece muito longe fica ali em bruto e vivo, numa linguagem seca, em que Enia não meteu pó de arroz. Não há ali queixumes ou frases de efeito, o conteúdo do texto é mais do que o que basta, e apresentá-lo com uma prosa limpa é a melhor estratégia narrativa.

Assim, neste livro, temos os resgates e os mortos, mas também a relação do narrador com o seu pai. Enia observa os que chegam e os que esperam, mas dedica-se também aos que não chegam, num cenário de horrores criado por falta de mecanismos de receção e vontade de integração. Depois do século XX, em que se assistiu ao horror da instrumentalização do outro para o ódio, da desumanização do outro para o domínio e a vitória, é quase chocante ver que se retirou tão pouco.

As construções dos nacionalismos fizeram o seu papel, opondo uma identidade à outra, transformando em outro e, portanto, em distante o que não pertence a essa comunidade, ainda que muitas vezes o comum seja afinal a fantasia da criação de um coletivo. A ideia do “primeiro os nossos” será um dos maiores perigos do nosso tempo, e isto fica claro em Notas sobre um naufrágio, nas centenas de corpos afundados porque a divisão da Humanidade entre nações implicou que se lavasse as mãos perante quem tinha outro passaporte ou nenhum.

O romance de Enia é, assim, um retrato da Europa atual e das convulsões da nossa época. Se o lemos confortáveis em Portugal, não temos como ignorar o naufrágio concomitante noutra zona da Europa, tornando-se a obra num espelho da esquizofrenia social e política que permite o triunfo da calamidade.