Em 1988, a ginasta olímpica Missy Marlowe usou uma descrição drástica para que todos compreendessem a gravidade daquilo por que estava a passar: uma “trombose não séria”. A norte-americana referia-se aos twisties, o fenómeno que apaga a conexão entre a mente e o corpo do atleta e paralisa a memória muscular. Em Tóquio, mais de 30 anos depois da dura designação de Missy Marlowe, Simone Biles voltou a colocar o problema na ordem do dia.

“É tão perigoso. É basicamente uma situação de vida ou de morte. É um milagre eu ter conseguido aterrar sempre de pé. Se fosse outra pessoa qualquer, poderia ter saído de maca. Assim que aterrei depois do salto no cavalo, disse ao meu treinador que não podia continuar”, recorda Biles numa entrevista longa à New York Magazine.

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Quase dois meses depois dos Jogos Olímpicos, onde abdicou de praticamente todas as finais e só conseguiu competir na trave, alcançando a medalha de bronze, a ginasta norte-americana já tem outra perspetiva sobre tudo o que aconteceu. E tem a certeza de que nem sequer devia ter ido ao Japão. “Se olharmos para tudo aquilo por que eu passei nos últimos sete anos, eu nunca deveria ter estado noutra equipa olímpica. Eu deveria ter desistido bem antes de Tóquio, quando o Larry Nassar estava na comunicação social todos os dias durante dois anos. Foi demasiado. Mas eu não ia deixá-lo tirar-me algo para que eu tinha trabalhado desde que tinha seis anos. Não ia deixá-lo tirar-me essa alegria. Por isso insisti para lá disso enquanto a minha mente e o meu corpo me deixaram”, explica a atleta, recordando o antigo médico da seleção de ginástica dos Estados Unidos que abusou de centenas de jovens ginastas, incluindo Biles, ao longo de vários anos.

“Imaginem que chegavam aos 30 anos e viam perfeitamente. Até que, uma manhã, acordavam e não viam nada. Mas as pessoas diziam-vos para continuar e para fazerem o vosso trabalho como se continuassem a ver perfeitamente. Estariam perdidos, não estariam? Essa é a única comparação que encontro. Faço ginástica há 18 anos. Um dia, acordei e tinha perdido tudo. Como é que é suposto eu continuar com o meu dia?”, acrescenta Simone Biles, partindo das metáforas e das comparações para deixar clara a gravidade de tudo o que viveu em Tóquio.

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Ainda assim, algo é certo: a norte-americana tem plena noção de que é a melhor de sempre, tem plena noção de que dificilmente vai aparecer alguém que a iguale nas próximas décadas e tem plena noção de tudo aquilo que já alcançou. “Sei que sou uma num bilião por ter chegado tão longe. Claro que acho que é possível que apareça outra num bilião. Mas no final do dia, alcançar tudo aquilo que eu já alcancei? Acho que o talento ainda não pode ser igualado. Olhando para os meus números, principalmente na ginástica, onde existem tantas lesões… Eu nunca tive uma lesão grave a impedir-me de ir a uma grande competição. Ser tão saudável durante tantos anos? Nunca acontece. Vai demorar muito tempo até aparecer alguém que consiga atingir tudo o que eu atingi”, atira Simone Biles, deixando alguma modéstia de lado para dizer aquilo que todos sabem ser verdade.

A ginasta garante que não sabe explicar como é que fisicamente faz o que faz quando está em competição e que só pode acreditar que o tal talento que ainda não pode ser igualado foi “uma bênção de Deus”. Na entrevista, Biles revela ainda que foi ela que disse ao terapeuta que estava pronta para ir aos Jogos Olímpicos e que acreditou que “as feridas tinham fechado” — mas quando chegou a Tóquio, sem pais, sem amigos e sem público, o vazio e o silêncio acabaram por levar a melhor. Assim que voltou aos Estados Unidos, voltou também à terapia.

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“Só quero que um médico me diga quando é que isto vai acabar. Quando te lesionas, és operada e pronto, está feito. Porque é que alguém não pode dizer-me que em seis meses isto vai acabar? Mas isto vai ser algo com que, provavelmente, vou ter de lidar durante 20 anos. Não interessa o quanto eu quero esquecer. É um trabalho em progresso”, termina.